Uma delícia a volta de Millôr Fernandes à Veja. Nem bem terminamos a leitura e a contemplação dos desenhos e charges, é como se não tivesse havido interrupção esses anos todos. Procuramos a página seguinte. Infelizmente, há ali o comercial de um banco. Quer dizer, que bom que há anúncio. Uma das definições de imprensa: o que se escreve no verso dos anúncios. Mas que seria bom ter mais uma página de Millôr, ah, seria!
Nesta semana (Veja nº 1.874, de 6/10/04), a irreverência habitual de mais um achado: como é que a ninguém ocorreu descobrir e parafrasear uma das célebres metáforas presidenciais? Pois, à semelhança da lenda que está na origem da expressão ‘ovo de Colombo’ – sobre tal ambigüidade, certamente alguém deve ter feito o trocadilho desjeitoso – foi apenas Millôr e somente ele quem fez de Lula o ‘nosso filósofo maior’ a proferir a variação de conhecido provérbio: ‘Não se pode fazer um omelete sem chutar os ovos’.
Desta vez, diferentemente do que faz a maioria dos humoristas, que martelam a ambigüidade lexical, explorando palavras de muitos sentidos, especialmente de duplo sentido, Millôr substitui o verbo e faz a graça que possibilita criticar o presidente e suas metáforas quase sempre repetitivas e atrapalhadas.
A verve de Millôr não perdoa nada e ninguém. É um iconoclasta, continua a ser o que sempre foi, a fazer o que sempre fez – humor. E é por isso que o lemos. Mas seu humor não é rude, grosseiro ou chulo, tentação em que cai com freqüência, por exemplo, o grupo Casseta & Planeta. Não, Millôr faz humor para o povo do livro, para quem pode degustar as sutis complexidades da ironia.
Excessivamente condescendente com Lula, a imprensa o poupa com muita freqüência, omitindo-se da crítica, sempre necessária, principalmente face ao poder. É verdade que o presidente prestigiou a Bienal do Livro, em São Paulo, ano passado, mas alguém lembra o que ele disse às crianças sobre a leitura? Meu Deus! O MEC é o maior comprador de livros do mundo! O presidente poderia receber um pacotinho com alguns volumes indispensáveis. Infelizmente vai ser difícil garimpá-los nas compras que o governo vem fazendo por atacado, das quais é difícil, para não dizer impossível, entender os critérios, se é que houve algum.
Pensar e transgredir
Na Veja que está nas bancas, Millôr, em poucas palavras, certeiro e divertido, investe contra o que ele chama de ‘despreconceito’. Os ‘despreconceituosos’ são seu alvo. À primeira leitura, uma certa arrogância: ‘Não conheço ninguém – ninguém – que não seja preconceituoso. Mas conheço toneladas de fingidos, de hipócritas, muitas vezes até, inconscientemente covardes. Conheço só um cara absolutamente despreconceituoso – o locutor que vos fala’. E então, o grão-de-sal da humildade insólita: ‘Ferozmente autocrítico, sei que, se me deixar solto, sou racista, machista, elitista, argentário, reacionário, escravagista e todo o demais repertório’.
Recomendo a leitura da página de Millôr, esta semana, especialmente àquelas forças obscurantistas que, sem conhecer nada de transgênicos, estão a ponto de tornar a lavoura no Brasil uma atividade clandestina. E o presidente, que baixa Medidas Provisórias a torto e a direito, não baixou nenhuma segurança legal a quem não tem outro jeito de plantar, a não ser recorrendo a sementes transgênicas. Por que transformar desse modo a ciência em heresia ou, o que é mais grave, em braço auxiliar de quem, nada entendendo de pesquisa, e nada tendo feito em favor da pesquisa, organiza-se agora em lobbies que condenam o que não conhecem?
E a imprensa tem grande responsabilidade. Exagera na cobertura a quem defende um fundamentalismo que impede a reflexão, impede que a questão seja examinada à luz de discussões com quem entende. A conversa clara é a menor distância entre dois pontos. Por que ela é tão evitada na questão dos transgênicos?
Sigamos a lição e o exemplo de Millôr: como disse Gramsci, todos são intelectuais, e não apenas quem se dedica a atividades tidas por privativas de intelectuais, como a de escrever, que é nosso ofício. Ou como diz, de outro ponto de vista, a escritora Lya Luft, ainda no título de um livro: ‘Pensar é transgredir’.
Millôr pensa, escreve e transgride. Que bom para os leitores!