Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jogo pesado do poder

A trajetória de O Liberal, que no dia 15/11 chegou a 60 anos, pode ser dividida em três etapas, exatamente iguais até agora: 20 anos (1946-66) como jornal de partido, o PSD de Magalhães Barata; 20 anos (1966-86) sob o comando pessoal de Romulo Maiorana; e 20 anos (1986/2006) mantido pelos herdeiros, à frente dos quais está o mais velho dos dois filhos homens, Romulo Maiorana Júnior.


A novidade, depois da data do 60º aniversário, é que a terceira fase pode se tornar mais longa do que as anteriores. No curso dos próximos anos a corporação ainda terá que responder a um desafio que se impôs com a morte de Romulo. Ele carregou o bastão de passagem entre uma etapa e a outra, mas não concluiu o item fundamental para sua obra prosseguir depois de seu afastamento: a profissionalização da empresa.


Em contínua atividade, impondo-se sempre novos desafios, Romulo não teve tempo nem disposição para preparar convenientemente a profissionalização da sua empresa familiar, que criou e transformou numa fonte de poder no Pará. Surpreendido por uma doença feroz, dedicou seus últimos meses a azeitar as engrenagens para que elas continuassem a funcionar sem maiores entraves: deixou dinheiro em caixa, obrigações em dia e um plano de expansão em andamento.


Graças a essas providências, não houve problema de continuidade quando ele morreu, em abril de 1986. O Liberal continuou a crescer, principalmente pela via da modernização industrial, e pela incompetência dos seus concorrentes (o que já fora decisivo quando Romulo, assumindo o mais fraco dos jornais diários, colocou-o no topo do ranking cinco anos depois). Mas em vez de complementar essa ousadia em investimentos em capital fixo com aplicações em material humano e em consistência administrativa, o jornal passou a usar seu incontestável poder de pressão para extrair receitas crescentes do poder público, em especial do governo do estado.


A fórmula que garantiu uma expansão constante da empresa em meio a tantas crises ao redor revela mais uma vez a sua fragilidade: as poderosas e impressionantes Organizações Romulo Maiorana se tornaram patologicamente dependentes de verbas públicas de publicidade e assemelhadas, em grandes doses.


Essa dependência já se manifestara quando Jader Barbalho assumiu pela segunda vez o governo do Pará, em 1991. Depois de sofrer uma campanha sistemática e agressiva, tentou retaliar os Maiorana, que o boicotavam, fechando o caixa do tesouro. Mas, aos poucos, acabou cedendo às exigências. Pragmaticamente falando, não tinha escolha: qual a outra alternativa, num mercado de virtual monopólio, como o da imprensa paraense naquela época (98% dos leitores de jornal liam O Liberal, dizia a propaganda, que, já então, talvez fosse mesmo enganosa, mas ninguém conferiu)? O império Maiorana ganhou essa batalha, depois de perder a guerra eleitoral.


Manipulação de informações


O segundo momento se apresentou quando Edmilson Rodrigues, então no PT, assumiu a prefeitura de Belém pela primeira vez, em 1997. Ele tentou seguir o caminho de ataque de Jader Barbalho, mas acabou retornando pelo mesmo caminho de composição: provavelmente concedeu ao império ainda mais verba do que seu antecessor, Hélio Gueiros, que era um aliado, mas deixou cascas de banana na rota de saída do Palácio Antônio Lemos (que o novo alcaide precisou recolher, a peso de ouro).


Nos três entreveros seguintes – com a Rede/Celpa, o Banco da Amazônia e a Companhia Vale do Rio Doce, três das mais poderosas empresas em atuação no Estado – os Maiorana também se saíram bem. A CVRD, que chegou a contestar judicialmente a cobrança de um título supostamente não pago (sem o endosso do emitente) apresentado em nome de Delta Publicidade. A Vale replicou com uma ação de indenização, algo inédito nos anais do grupo Liberal, recuou, fez acordo, voltou a despejar publicidade nos veículos e nunca mais tocou nas demandas em juízo, que dormem a sono solto na 8ª e na 18ª varas cíveis de Belém.


Reforçados pela sensação de onipotência extraída desses episódios, os Maiorana podem se sentir acima do bem e do mal, tudo – digamos assim – podendo. Calafetaram as rachaduras, pintaram as manchas, amarraram os locais soltos e colocaram sua fé numa impressora alemã de última geração, comprada por 10 milhões de euros sem a necessidade de aval. ‘Preparado’, o espelho jamais revelaria a nudez do rei. Ele seria o rei da cocada preta, não o da quitanda, como querem os maledicentes e invejosos.


O primeiro imprevisto grave na manutenção desse plano de poder surgiu com a necessidade de desfiliação ao IVC (Instituto Verificador de Circulação). Apesar de a corte se recusar a admitir que o traje do rei é, na melhor (ou na pior) das hipóteses, invisível, já não é mais possível deixar de vê-la quando o traje bonito não é mais refletido pelo espelho ‘trabalhado’.


O Liberal deixou de ser o líder absoluto no mercado de jornais, como proclamava. Mantém o primeiro lugar, mas a uma distância pequena do seu perseguidor, o Diário do Pará, que continua evoluindo, embora ainda não tanto quanto devia ou podia (se não, teria substituído o concorrente no IVC e, à queda, desferido o coice, se a tanto pudesse se credenciar).


Se a aparência de O Liberal ainda é melhor, em conteúdo não há diferença destacável. O crescimento do jornal do deputado federal Jader Barbalho é tão categórico que crescem os boatos sobre uma parceria dele com a CVRD – negócio que não é apenas eleitoral (a companhia foi a maior financiadora de campanhas na última eleição no Brasil). Quando sofreu combate cerrado nos veículos da família Maiorana, a Vale do Rio Doce fez sondagens cautelosas sobre uma ‘terceira via’ na imprensa diária paraense, que estaria disposta a patrocinar, por becos e travessas.


O resultado não foi animador: a empresa acabou tendo que aceitar os termos da rendição. Mas um homem inteligente, decidido e pragmático como Roger Agnelli, o plenipotenciário presidente da Vale, não deve ter gostado da fragilidade da sua posição junto à opinião pública do Estado mais decisivo para os seus propósitos de grandeza. Daí a insistência das versões que dão como certa uma parceria CVRD-Grupo RBA – por baixo dos panos, naturalmente.


De objetivo, porém, há apenas a veiculação de publicidade no grupo barbalhista, o que não é pouco, e a troca de gentilezas entre os dois personagens. Deixou de haver favorecimento ao grupo Liberal, sempre tendente a cobrar privilégios em função do seu poder (de falar ou silenciar). O efeito de mais esse ponto negativo para o império Maiorana se acentuou com a nova derrota eleitoral – e fragorosa – sofrida com a eleição de Ana Júlia Carepa (PT) para o governo do Pará.


A novidade em relação às derrotas das ORM no passado é que desta vez há dois adversários do outro lado (um potencial, Ana Júlia, boicotada pelos veículos dos Maiorana, e outro real, o próprio Barbalho). Além disso, a família exagerou na manipulação de informações contra a candidata do PT, como há muito tempo não se via. Combateu um jornal de político, como o Diário do Pará, renunciando a lhe opor profissionalismo empresarial. O Liberal foi tão ou mais tendencioso e passional do que o Diário. O menor volume de publicidade na edição comemorativa do 60º aniversário e o tom menos incisivo do inevitável artigo de primeira página assinado por Romulo Jr. dizem alguma coisa sobre o novo contexto.


Produto correto


Da retrospectiva (ou retroperspectiva) dos Maiorana, não havia outra opção durante a eleição: a empresa queria, a todo custo, manter seus privilégios na programação da publicidade oficial. Se uma derrota significasse a perda súbita do rio de dinheiro que drena do erário para o caixa das ORM, a vitória tinha que ser buscada por todos os meios e métodos. Ao menos para preparar a corporação para viver sem o aditivo monetário fundamental para sua programação financeira.


Veio a derrota sem qualquer preparo para a autonomia da empresa. A sorte do império está selada? Os mais apressados já estão achando que sim: todos os inimigos dos Maiorana, que não são poucos e não são destituídos de ímpetos de vingança, se reuniriam em torno de Ana e Jader para o acerto de contas. Logo, na gangorra do poder, o grupo RBA subiria para o grupo Liberal descer.


Mas a realidade é um tanto mais complexa do que essa geopolítica primária é capaz de expressar. Se o jornal está em franco declínio, apesar das aparências em contrário (sempre pouco mais do que aparências), há ainda o poder da televisão. A TV Liberal cometeu muitos erros, alguns crassos (como a ausência de investimentos em equipamentos, o contrário da regra no jornal, que a deixou para trás e envelhecida) e outros inacreditáveis (como as falhas na cobertura jornalística da rede).


A ainda mais poderosa TV Globo não reagiu com quebra de contrato ou qualquer outra medida dramática: simplesmente interveio na TV Liberal para colocar a afiliada no eixo do padrão Globo de qualidade. A intervenção já dura meses e não tem data para ser levantada. É por isso que pelo vídeo saem notícias que são cortadas ou maquiladas no papel impresso. Essa maior atenção ao jornalismo ecoa as ordens de profissionalização dos herdeiros de Roberto Marinho, muito mais sensíveis a essa determinação do que seus ‘primos’ afins.


A Globo tenta corrigir os erros e as imprevidências dos Maiorana, mas essa tarefa demanda tempo. Até que um bom resultado seja alcançado, só podem contar com seus parceiros, se acharem-nos recuperáveis. Uma suspensão brusca do indecoroso convênio da Fundação de Telecomunicações do Pará com a TV Liberal privaria a rede Globo de espalhar sua imagem pelo estado, o segundo mais extenso do país. Os Maiorana criaram rede própria de retransmissão apenas na área de influência de Belém. Para a grande maioria do interior, a programação global segue pelas antenas e estações da Funtelpa, que, por isso mesmo, se tornaram vedadas à TV Cultura. Os Maiorana não se importaram com as extravagâncias desse convênio, pelo qual quem cede paga para servir a quem fatura.


Os termos de uma futura relação terão que sair desse enredo kafkiano, carrollliano ou orwelliano, conforme a escolha do surreal. Mas a Globo mandou dizer que não já e não por inteiro: na formação do seu preço de venda está computada uma audiência com a inclusão dos municípios paraenses; sem eles, haverá perda. Pequena, claro. Mas quem quer perder dinheiro?


Alguns situam nesse contexto o tratamento especial dispensado há duas semanas pela Globo a Jader Barbalho. A notícia do recebimento de mais uma denúncia contra ele pelo Supremo Tribunal Federal mereceu o latifúndio temporal de dois minutos e meio no Jornal Nacional. Por acaso? Óbvio que não foi só por isso: há questões nacionais, políticas e empresariais, algumas com um elo certo (o de Antonio Carlos Magalhães, por exemplo), mas o resíduo local deve ter sido lembrado também. O tempo excepcionalmente longo a uma notícia ruim para o ex-senador foi um recado inequívoco. Destinou-se a fazê-lo recuar em seu expansionismo de poder, sobretudo junto ao presidente Lula, avalista da sua tentativa de retornar ao centro decisório.


Esse tratamento não pode ser usado contra Ana Júlia Carepa, nem deve haver esse propósito quanto a ela. A intenção pode ser a de sugerir-lhe que uma negociação em torno de objetivos comuns será de bom tamanho. A nova governadora haverá de avaliar os recados e pedidos, mas a ela se impõe, para ser coerente com o discurso da campanha e a votação da vitória, uma outra dimensão, superior a essa: a dos legítimos interesses do povo paraense. Espera-se que ela chegue ao produto correto. Ou a história lhe apresentará a conta de chegada: a irrelevância e o esquecimento.

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Editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)