Qual o maior presente que uma publicação como esta pode receber na comemoração dos seus 20 anos de vida? O retorno do seu leitor. O Jornal Pessoal é, rigorosamente, um jornal do leitor, como poucos o foram na história da imprensa. Depende apenas dele, na mais democrática e profunda das relações. O jornal se oferece quinzenalmente nas bancas de revistas àqueles que se dispõem a procurá-lo e adquiri-lo. A relação, portanto, depende tanto do jornal quanto do leitor.
O jornal não tem enfeites nem adereços: se apresenta despido de qualquer recurso de marketing. Até desafia elementares regras mercadológicas: não aceita anúncio, não faz assinatura e seus pontos de venda exigem do comprador capacidade de iniciativa e de deslocamento. Tem que sair de casa para encontrá-lo. Bancas que tinham localização estratégica e funcionavam como pólos de referência na cidade, perderam parte dessas qualidades por causa do caos urbano e da ineficiência do poder público em garantir a segurança coletiva. Parte da clientela sumiu.
Diante de circunstâncias como essas, o Jornal Pessoal nunca será um case, nem poderá reivindicar títulos de excelência. Mas esta edição de aniversário difere de qualquer outra na grande imprensa: abre suas páginas não para abrigar publicidade, mas para deixar passar a manifestação de um conjunto de leitores. Comprova-se que realmente eles são a razão de ser da publicação. E acho que constituem uma amostra representativa do universo.
Próximos e longínquos
Todos esses leitores responderam a um convite meu. O critério de seleção foi simples, embora possa não ser o melhor: só receberam mensagens aquelas pessoas que lêem o jornal, que costumam escrever a respeito dele (mesmo que informalmente), que não integram o círculo mais próximo do editor, que estão em condições de fazer uma avaliação crítica da publicação, de preferência contextualizando a análise, e que também integram outro universo – geográfico ou temático. Embora não tenha realizado um dos meus objetivos, que seria incorporar os opostos, aqueles leitores que divergem abertamente do jornal e com ele já se confrontaram, pela inviabilidade prática dessa consulta, fiquei muito feliz com o retorno que as pessoas por mim contatadas deram.
Lendo e relendo o que escreveram para editar este número especial, cheguei algumas vezes às lágrimas – de emoção, de conforto, de alegria. Conhecendo-as como conheço, tenho absoluta certeza de que não quiseram simplesmente me agradar, inflar ego ou cultivar vaidade. Exerceram, de fato, seus apurados sensos críticos. É inegável, contudo, um componente volitivo: estimular o editor a prosseguir na sua nada fácil saga e contribuir para a persistência da publicação.
Sem negar sua integridade intelectual, esses leitores exerceram as qualidades da generosidade e do afeto próprios da amizade. Descontem-se, por isso, alguns superlativos da avaliação, que visam confortar o editor. Excluídos os excessos da bondade, fica um retrato fiel do que é o Jornal Pessoal. Ou do que pretendeu ser, nem sempre bem arrematando o que se propôs a fazer. Somos a soma do que fizemos e do que quase fizemos. Se continuarmos a tentar, a utopia será sempre a nossa meta.
Este jornal não devia existir, como observa o jornalista Lucas Figueiredo, um dos colegas de profissão que conseguiu passar galhardamente das efêmeras páginas da imprensa cotidiana para o desafio das páginas do livro. Mas existe há 20 anos. No início ele concorria diretamente com a grande imprensa. Como eu mantinha um pé nela, essa condição me favorecia com o outro pé, o alternativo. Podia circular, dentro e fora de Belém, beneficiando-me de uma base física convencional de produção, sem me deixar limitar por ela na hora de escrever (a cabeça é sempre livre, ainda se o corpo está aprisionado).
Mesmo quando me demiti de O Estado de S. Paulo, em 1989, perdendo essa preciosa ferramenta, que usei com intensidade durante 18 anos, não enfrentei restrições paralisantes. Meu FGTS, que pude sacar integralmente, supriu a incapacidade do Jornal Pessoal de me munir de capital, tanto para investimento quanto para custeio.
Espero poder demonstrar a capacidade que tem uma imprensa alternativa de ombrear-se com a grande imprensa num livro, que espero ainda escrever até o final do ano, sobre essa primeira fase do JP. Acompanhando de perto os acontecimentos, os mais próximos e os mais longínquos, com tempo para freqüentar minhas fontes, mantendo-as ativas e colhendo suas informações, consultando cada documento produzido pelas engrenagens de poder (públicas e privadas), eu podia oferecer ao leitor novidades importantes – e exclusivas – a cada edição, além de contrapor de imediato as retóricas em curso, sobretudo as das elites.
Boa maneira de errar
A segunda fase começa em 1992, quando Rosângela Maiorana Kzan, filha de Romulo Maiorana e diretora do império jornalístico por ele transmitido aos herdeiros, ajuizou cinco ações seguidas contra mim, a partir de setembro daquele ano, justamente o mês de aniversário do JP (e do seu redator solitário). Rosângela me levou às barras da justiça por não conseguir interferir nas matérias que comecei a escrever sobre as dissidências internas na corporação, polarizadas por ela e o principal executivo da empresa, Romulo Maiorana Júnior. Os fatos relatados envolviam a ambos, mas apenas ela me processou: quatro ações penais, com base na mal-afamada Lei de Imprensa, do regime militar, e uma cível, para me calar. Rominho não devia estar feliz com as matérias, mas não podia desmenti-las. Como nunca ninguém desmentiu este jornal, no essencial que publicou nestes 20 anos.
Alguns tentaram, mas se deram mal. No meu último livro, O jornalismo na linha de tiro, reproduzi ferozes polêmicas com alguns oponentes. Ao final delas, minha versão resistiu aos questionamentos e os fatos que argüí se mantiveram. O JP sobreviveu a tantos embates e incidentes, firmando sua credibilidade, por ter essa âncora: a verdade dos fatos. Personagens centrais na história do Pará nessas duas décadas mantiveram um duro – mas instrutivo – contencioso com o jornal, sem jamais resvalar para a ofensa e sem precisar recorrer à via judicial. Foi-lhes garantido o direito de aqui se expressar, sem qualquer restrição, e eles apostaram na controvérsia. Mesmo os que perderam, saíram ganhando com essa opção.
A partir das cinco ações de Rosângela Maiorana Kzan, a justiça passou a ser o recurso automático de poderosos personagens contrariados pelas matérias deste jornal. Dos 32 processos a que respondi, ou ainda respondo, instaurados desde 1992, 18 são dos Maiorana, que nunca exerceram o direito de resposta ou usaram seus próprios meios de comunicação para contraditar o que escrevi. Sintomaticamente, as ações dos dois irmãos de Rosângela surgiram em seguida à agressão de Ronaldo Maiorana contra mim. Usaram a velha tática de que a melhor defesa é o ataque, ataque feito com motivação mascarada, o não-dito sendo a verdadeira causa e não o que é dito nas petições. Nesse antiprocesso, o que circula pelos bastidores e à margem dos autos pode ser tão decisivo – ou mais – quanto o conteúdo das páginas processuais.
Esse contencioso gerou o mau exemplo, que se disseminou. O uso imoderado, excessivo e abusivo da justiça se transformou, no Pará, num instrumento de cerceamento ao direito constitucional de informação, que, para um jornalista consciente, é também um dever. Enredado em dezenas de incidentes processuais, que se multiplicam a partir de cada uma das 15 ações ainda em curso, perdi a liberdade, o tempo e as condições operacionais que o jornalismo exige. Há muitos anos meus fins de semana são a forja deste jornal, que costumo escrever de um só impulso, principalmente nesses dois dias, reservados ao descanso e ao lazer. É uma boa maneira de errar, sobretudo aquele erro que resulta do cansaço, da desatenção, do esgotamento das faculdades mentais pela exaustão do seu uso, pela tensão permanente no seu uso. Daí tantos errinhos, em especial os de acabamento, que incomodam como uma pedrinha no sapato.
Ventura maior
Surpreendo-me, até eu, ao chegar a esta edição de 20 anos tropeçando tanto, sem, contudo, cair ao chão, desabar, o que, em jornalismo, significa perder a credibilidade. Cientes das difíceis circunstâncias nas quais este jornal é escrito, meus leitores têm sido de suprema tolerância a essa epidemia de errinhos. Eles e eu partilhamos esse entendimento tácito por causa de uma pergunta: e se – e quando – o Jornal Pessoal acabar?
Não poucas vezes me formulei a questão de forma categórica: o Jornal Pessoal precisa acabar. Talvez seja condição para que eu não acabe antes dele, ao menos nessa conjuntura persecutória, que não tem fim. Meu querido e saudoso amigo Haroldo Maranhão escreveu certa feita, em A Província do Pará, que eu esgotara as possibilidades do jornalismo. Devia buscar outra trincheira. Sugeria que fosse a política. Partilhei a opinião dele, mas não pude sacrificar uma criatura que é minha própria pele. Nada me reflete mais do que este pequeno conjunto de folhas de papel.
Agradeço ao mistério da vida (e do além-materialidade) que estas folhas impressas reflitam também esta região, que tanto amo e cuja imolação tanto lamento, contra a qual me tenho empenhado, mesmo sabendo ser pouco mais do que inútil o máximo desse empenho. Ainda assim, é um grito lançado no ar, um grito de indignação – e uma conclamação a se fazer o diferente, salvando-se nossa Amazônia do destino colonial que lhe é imposto por personagens cinco estrelas.
O Jornal Pessoal é nada. Ainda assim, existe. E, tenho a esperança, continuará a existir mesmo quando parar de circular, destino certo, embora ainda sem data fixada. Só espero que dê alguma contribuição para que a Amazônia tenha destino melhor.
Aos leitores que este jornal formou ou alimentou cabe a tarefa de responder por esse desafio maior. Cedendo-lhes a vez nesta data tão cara, em todos os sentidos, quero expressar meu agradecimento pelo que considero minha maior ventura: fazer o que gosto e ter ao alcance do que faço pessoas de tanto valor, como meus leitores. Eles constituem a festa de aniversário do Jornal Pessoal.
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)