O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, afirmou, na terça-feira, 16/6, que o sistema prisional brasileiro é uma “escola de crimes”. Onde está a novidade? Inúmero(a)s especialistas já vêm denunciando esse fato há anos, inclusive com pesquisas mais concretas, como, por exemplo, levantamento realizado pelo Conselho Nacional do Ministério Público, intitulado A visão do Ministério Público sobre o sistema prisional brasileiro, publicado em 2013. Mas pior que a repetição de uma situação antiga foi o papel que a mídia nacional desempenhou nesse contexto, ao reverberar a afirmação do titular do MJ sem ampliar e problematizar o fato.
A discussão sobre o sistema prisional brasileiro é antiga e, além de envolver advogado(a)s, promotore(a)s de justiça e magistrado(a)s, está contida nas discussões mais engajadas de sociólogo(a)s, assistentes sociais e outros profissionais e cidadãos comuns nos âmbitos da sociedade brasileira onde se concentram as preocupações concernentes aos direitos humanos.
No contexto da produção acadêmica, por exemplo, não faltam artigos científicos, dissertações, teses, livros que discutem a atual configuração e propõem outros modelos para o sistema penitenciário nacional. Em trabalho intitulado Endurecimento das penas e da execução penal: retrocesso inigualável, Fernando Viggiano (2001-2002, p. 26) afirma que “a prisão, em vez de combater a criminalidade, estimula-a, não traz qualquer benefício ao segregado e seus efeitos são avassaladores […]”. De acordo com Oliveira (2007), em A falência da política carcerária brasileira, a política prisional do país esteve sempre posta em segundo plano, fato que dificulta a implantação de políticas públicas penais. Para ela, por este motivo as prisões são espaços propícios para a produção e reprodução da violência. Citando Rolom (2006), Lauermann e Guazina (2013, p. 184) afirmam que “o que se tem são milhares de sujeitos nas prisões que, em algum momento, retornarão ao convívio social, quer seja mais habilitados a praticar crimes, por vezes, mais graves, quer seja marcados pelo estigma que, por mais que tentem, dificilmente eles terão uma chance longe da ilegalidade”.
Como vimos a partir dos exemplos citados, são várias reflexões, constatações através de pesquisas, de estudos que demonstram a incapacidade de o sistema penitenciário brasileiro ressocializar o indivíduo infrator, o que, portanto, faz da afirmação do ministro da Justiça uma obviedade. No entanto, o fato de o ministro haver afirmado que as prisões no país são instituições que reproduzem e ampliam a violência e os crimes, e, portanto, “escolas de crimes”, foi tomado por uma parte considerável da mídia nacional (somente para citar alguns: Globo News, Folha de S.Paulo, G1, A Tarde) como digno de reprodução fatual, sem qualquer tipo de intervenção questionadora. Cardozo é a maior autoridade da Justiça no país. Os jornalistas, entretanto, desconsideraram esse fator, bem como o fato de o ministro integrar um governo cujo partido governa o Brasil há mais de 12 anos consecutivos, o que, portanto, daria margem para indagar ao membro da administração federal acerca das proposições e/ou aplicações de medidas efetivas em prol da recondução do sistema prisional em nosso país, por exemplo. Mas, diferentemente, o que vimos no jornalismo, impresso ou eletrônico, foi a repetição da frase – por vezes como manchete –, como se tratasse de uma notícia nova.
Perda da qualidade jornalística
Que tipo de jornalismo está sendo feito no Brasil? Trata-se de censura dos meios ou de incompetência dos profissionais? Ou ambos os fatores? A resposta a essas questões demanda uma ampla reflexão, que no momento não cabe. Porém, podemos refletir um pouco acerca do fato de o jornalismo se constituir em uma atividade social importante, que exige do seu exercício seriedade, profundidade, responsabilidade; sobretudo porque se trata de uma forma de conhecimento.
Conforme Eduardo Meditsch (1997, p. 11), “ao se deixar de considerar o jornalismo apenas como um meio de comunicação para considerá-lo como um meio de conhecimento, estará se dando um passo no sentido de aumentar a exigência sobre os seus conteúdos. Conhecimento implica em aperfeiçoamento pela crítica e requer rigor”. Ainda de acordo com ele, quando consideramos o jornalismo como produtor de conhecimento devemos levar em conta a exigência que se deve ter no que se refere à formação, porque, conforme assinala, os jornalistas “deixam de ser meros comunicadores para se transformarem em produtores e reprodutores de conhecimento” (p. 12). Alfred Vizeu (2007) também compartilha com a concepção de que o jornalismo é conhecimento. Para ele, além de transmitir, o jornalismo prepara, apresenta uma realidade e contribui “para a percepção do mundo”.
Mas, infelizmente, há muito o jornalismo brasileiro vem sucumbindo ao puro e simples factual. Nessa mesma semana, na segunda-feira, 15, no programa GloboNews em Pauta, a jornalista Cristiana Lobo comentava acerca da proposta de sistema previdenciário aprovada pelo Parlamento brasileiro, afirmando que há a necessidade de o Brasil reformular o sistema que atualmente vigora, citando como exemplos países europeus que reavaliaram seus modelos, como a Itália. Contudo, a jornalista “esqueceu-se” de ressaltar que, se é verdade que na Europa vários Estados reformularam seus sistemas previdenciários, a fim de otimizá-los, em muitos desses mesmos países a jornada de trabalho é bem inferior à brasileira, por exemplo. Enquanto no Brasil se trabalha 44 horas semanais, na Itália o máximo permitido são 40 horas; na Alemanha, 41; na França esse número cai para 34, somente para citar alguns. A comparação feita em relação ao Brasil e países da Europa acerca do sistema previdenciário pela jornalista, no entanto, limitou-se ao aspecto financeiro dos cofres públicos, privando o(a) telespectador(a) de conhecer outros aspectos que lhe proporcionariam melhores condições de conhecer mais a respeito da realidade laboral em outras partes do mundo. Descobriria, por exemplo, que menor jornada de trabalho não significa, necessariamente, menor produtividade ou menor qualidade de vida, haja vista que o estado de bem-estar social do(a) trabalhador(a) desses países, mesmo quando há uma crise econômica, é bem superior ao do trabalhador(a) brasileiro(a). Mas a “discussão” foi rasa, limitada à citação de alguns aspectos estanques, que desqualificaram o exercício do bom jornalismo.
O resultado dessa “prisão” ao factual é a perda da qualidade da atividade jornalística, que, quando bem exercida, pode refletir em ganhos significativos da cidadania em sua compreensão do mundo e da realidade mais próxima que a cerca. Independentemente da(s) causa(s) dessa submissão ao factual, quem perde com esse tipo de jornalismo é a sociedade, pois tem subtraídas as oportunidades de ampliar sua gama de informações e, portanto, diminuídas as possibilidades de intervenção na realidade.
Referências
MEDISTCH, Eduardo. O jornalismo é uma forma de conhecimento? Biblioteca Online de Ciencias da Comunicação. 1997. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/meditsch-eduardo-jornalismo-conhecimento.pdf.>.
LAUERMANN, Jusiene D.; GUAZINA, Félix M. Para além dos muros institucionais: problematizando os discursos dos egressos do sistema prisional. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-65782013000100010.>.
OLIVEIRA, Hilderline C. “A falência da política carcerária brasileira. III Jornada Internacional de Políticas Públicas”. São Luís – MA, 28 a 30 de agosto 2007. <http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppIII/html/Trabalhos/EixoTematicoF/7747d19a7e9a8726e4faHilderline.pdf.>.
VIGGIANO, Fernando B.. Endurecimento das penas e da execução penal: retrocesso inigualável. Revista da Faculdade de Direito da UFG. Nº 1, p. 23-35, 2001-2002. Disponível em: < http://www.revistas.ufg.br/index.php/revfd/article/view/12021/7972 >.
VIZEU, Alfredo. “É o fim do jornalismo?” Fenaj, 2007. Disponível em: <http://www.fenaj.org.br/materia.php?id=1823>.
CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. A visão do Ministério Público brasileiro sobre o sistema prisional brasileiro. Brasília: CNPM, 2013. Dsiponível em: < http://www.cnmp.gov.br/portal/images/stories/Destaques/Publicacoes/Sistema%20Prisional_web_final.PDF. >.
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Verbena Córdula Almeida é doutora em Historia y comunicación en el mundo contemporáneo pela Universidad Complutense de Madrid e professora adjunta da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus, BA