Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo cor-de-rosa pós-moderno

Em meio à crise que assola a Bahia – em consonância do que ocorre em todo o país – com arrocho salarial, precarização das condições de trabalho e de aposentadoria, entre outros fatores que desencadearam uma onda de paralisações, além das greves dos professores das quatro universidades estaduais e dos agentes penitenciários, sem contar a quantidade de pessoas que ficaram sem moradia no último mês, o maior e mais antigo jornal do estado – A Tarde – publicou na editoria de política de sua versão online, na segunda-feira 1º de junho, texto dando conta da postagem de um vídeo do governador Rui Costa no Facebook pintando as unhas da filha mais nova. (http://www.atarde.uol.com.br/politica/noticias/1685362-governador-rui-costa-posta-video-pintando-a-unha-da-filha). É impossível não questionar o tipo de jornalismo (?!) que vem sendo praticado pelo referido diário. E, pior ainda, é impossível não lamentar, sobretudo, os rumos seguidos pelo jornalismo pós-moderno.

Para Souza (2001, p. 13), o papel principal do jornalismo nos Estados democráticos é o de “manter um sistema de vigilância e de controlo dos poderes”. Ainda de acordo com ele, entre outras questões, “informar significa trazer para o espaço público os assuntos socialmente relevantes que poderiam passar despercebidos, os assuntos que são escondidos, os que estão submersos, os que são obscuros”. Diante do exposto, pergunto-me o que teria influenciado a editoria de política do jornal A Tarde a publicar essa “notícia” referente ao governador Rui Costa. Ao mesmo tempo, no entanto, atrevo-me a responder: há muito tempo o jornalismo entrou na lógica do capital e do livre mercado, e a informação foi transformada em uma mercadoria qualquer. É como enfatiza Marshall (2003, p. 24): “Acuado, o jornalismo vem curvando-se ao sistema, flexionando junto seus conceitos, valores, padrões e posicionamentos.” E não importa se isso traz, “a tiracolo”, desrespeito à cidadania e leitore(a)s que gostariam de encontrar em um jornal a preocupação com questões importantes e de interesse coletivo.

No caso desse episódio específico do jornal A Tarde, falta de assuntos para tratar é que não foi, pois, como afirmamos anteriormente, o estado da Bahia está consumido por problemas e, sendo assim, seria interessante, por exemplo, informar à cidadania o que o governo – e, portanto, o governador – está fazendo para solucionar ou minimizar a crise na educação em todos os níveis, no sistema penitenciário, no sistema de saúde, na infraestrutura – de transporte, de segurança pública, de saneamento básico, entre outros, em vez de publicar postagem pessoal do mandatário em uma rede social.

A performance publicitária do mandatário

Não é de hoje que o jornal A Tarde perdeu o rumo do jornalismo e se embrenhou nas linhas da superficialidade. E não me refiro apenas à edição online. A versão impressa chega a ser bem pior. Não raro vemos publicidades disfarçadas de notícias. Há alguns anos, um feirão de automóveis foi “noticiado” com direito a manchete de capa, numa total demonstração de falta de respeito a quem lê o jornal. É não fica somente por aí: são editoriais incipientes; erros contumazes da língua; notícias anacrônicas, entre outras questões que, com certeza, dissuadem qualquer pessoa minimamente ávida por informação jornalística de acompanhar o referido meio de comunicação.

Ao optar por publicar a postagem do governador Rui Costa pintando as unhas da filha caçula, o editor de política de A Tarde não fez mais do que confirmar esse esvaziamento do papel do jornalismo. Jogou-se por terra aquele conceito clássico de jornalismo, para dar lugar “à promiscuidade existente entre informação e propaganda em que as notícias dos jornais perdem sua missão precípua de reportar e passam a carregar os interesses de propagandear produtos ideias ou personagens […]” (MARSHALL, 2013, p. 41). É como afirma Marcondes Filho (1993, p. 52), para quem, atualmente, a atividade jornalística deixou de desempenhar o papel de ator político (grifo nosso), que “visava alterar o quadro de forças socais a partir do debate de ideologias e visões de mundo” e passou a “harmonizar como a frequência modulada dos consultórios”. E mais: o editor de A Tarde, na função de jornalista, desempenhou o papel do jornalista contemporâneo classificado por Bourdieu (1997, p. 106 apud Marshall, 2003, p. 33) como aquele submisso “à mentalidade-índice-de-audiência”, que “se curva sem culpas diante dos desejos e vontades do patrão […] do mercado e do capitalismo. Em último lugar vem a informação”.

A notícia, o jornalismo propriamente dito, encontra-se em estado de emergência. E tudo graças ao caráter mercantil, espetacularizante, oriundo da sociedade de consumo. Atualmente vale mais a performance publicitária de um mandatário do que propriamente sua atuação política no contexto para o qual fora eleito representante de uma coletividade. O exemplo citado a partir do jornal A Tarde não se trata de um caso isolado, mas de uma prática cotidiana, a qual tem desqualificado a atividade jornalística, secundarizando sua principal missão: a de informar.

Referências

MARCONDES FILHO, Ciro. Jornalismo fin-de-siècle. São Paulo: Página Aberta, 1993.

MARSHALL, Lenado. Jornalismo na era da publicidade. São Paulo: Sumos, 2003.

SOUZA, Jorge P. Elementos de jornalismo impresso. Porto, Portugal: Biblioteca de Ciências da Comunicação, 2001.

***

Verbena Córdula Almeida é doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporâneo pela Universidad Complutense de Madrid e professora adjunta da Universidade Estadual de Santa Cruz – Ilhéus-Bahia, Brasil