Numa varredura na internet para ler a cobertura do acidente com a plataforma de petróleo Deepwater Horizon da empresa British Petroleum, no Golfo do México, constatei a falta de angular com profundidade o lado humano nas reportagens.
Todas as reportagens, tanto das principais agências de notícias quanto de jornais locais das cidades imediatamente afetadas na costa sul dos Estados Unidos, abordam em primeiro plano, na linguagem das Nações Unidas, os impactos sócio-econômicos e ambientais – a riqueza das nações.
Duas reportagens apenas abordaram o acidente pelo ângulo mais humano, dos indivíduos, famílias e comunidades envolvidas, impactadas pelo acidente. Uma reportagem da NPR, do dia 22/04/2010, e uma da AFP, de 20/04/2010.
A da NPR, no meu modo de ver, foi a mais completa reportagem que eu pude ler, dentre uma dezena selecionada na Internet, pela massa de informação, dados, cronologia dos fatos e desdobramentos na linha do tempo e número de declarações de pessoas importantes e diretamente ligadas ao acidente, tanto da parte dos responsáveis diretos, quanto da parte dos envolvidos nos trabalhos de salvatagem e recuperação material e ambiental, incluindo executivos de órgãos oficiais de governo e da municipalidade. Mas o lado humano, mesmo assim, representou em termos de palavras do texto da reportagem, menos de 10% de toda a massa de informação.
Visão oportunística e desumana
Curiosamente, a matéria da AFP, de apenas 320 palavras reserva 28% de palavras para o enfoque envolvendo pessoas vitimadas, um percentual relativamente alto, em relação à média das outras matérias que eu pude ler, mesmo assim chama atenção para a questão de perdas materiais das supostas vítimas: ‘O grupo britânico (British Petroleum) de petróleo vem sendo citado na justiça desde a noite de quarta-feira por `negligência´ e `poluição´ por dois criadores de camarões da Louisiana que exigem milhões de dólares de indenização a título de prejuízos e danos, em nome de todas as vítimas econômicas da enorme mancha de óleo que se espalha. Na queixa à justiça, os criadores de camarões culpam não apenas a BP, mas também a proprietária da estrutura, a Transocean, o fabricante Cameron, e a Halliburton encarregada da consolidação do poço, que também apresentou defeitos.’
Na mesma varredura sobre essa tragédia, foi inevitável esbarrar em links interessantes sobre a oportunidade de mercado vislumbrada por algumas profissões e fornecedores de produtos. Num website de advogados de Louisiana, por exemplo, há um texto publicitário buscando sensibilizar as supostas vítimas com ofertas de gratuidade de defesa de seus direitos pelas perdas ‘irreparáveis’. Os advogados declaram-se em franco trabalho de levantamento de dados, esbanjando conhecimento jornalístico sobre informações do acidente, desde detalhes técnicos da plataforma, dos fornecedores e marcas responsáveis, a declarações de pessoas importantes que, segundo esses advogados, devem ser questionadas e etc. Novamente, não se trata de um ângulo humano da questão, mas de uma visão oportunística e, num certo sentido, desumana.
Simples ‘curiosidade’
Há um artigo de Rogério Simões, editor da BBC (publicado no Observatório da Imprensa), onde ele informa sobre a prática de checagem de mais de uma fonte (ainda bem), entre outras coisas, incluindo o pedido de desculpa quando o veículo comete um erro, e utiliza como gancho a cobertura do acidente com o Vôo 447 da Air France no Oceano Atlântico. Nas palavras de Rogério Simões, ‘…leitores e jornalistas, ainda desprovidos de explicações técnicas para o raríssimo fato de que um Airbus havia simplesmente despencado do céu, buscaram o lado humano dessa triste história… forma de homenagem às vítimas, ou por simples curiosidade, o lado humano de uma tragédia é sempre um importante material jornalístico…’
Rogério exemplifica o que pode ser abordado pelo ângulo humano numa reportagem: ‘Num momento como esse, o interesse pelas circunstâncias que colocaram cada passageiro dentro do voo da Air France, como o motivo de sua viagem, quem ficou para trás à espera de um telefonema na chegada ou quem se preparava para recebê-los…’
Por aí, dá uma boa redação no primeiro ano de faculdade. Excetuando a homenagem (a qualquer um), que nunca foi objetivo de reportagem alguma, e a ‘simples curiosidade’ (sobre as vítimas?), fica claro no texto de RS que, se existissem ‘explicações técnicas’, o lado humano daquela tragédia não seria um importante material jornalístico, talvez até fosse, mas em segundo plano. É isto que está evidente no seu texto.
Verdades absolutas
Não vejo porque um mesmo veículo não aborda os dois, ou mais, ângulos de uma ocorrência de tamanha repercussão, nessas tragédias, como praxe. Uma reportagem pelo ângulo material numa página, outra reportagem pelo ângulo humano na outra, ou uma página dividida ao meio com os dois enfoques. Ou 15 linhas para um viés, 15 para outro. Um minuto sobre os impactos materiais, um minuto sobre o estrago e vicissitudes nas vidas das pessoas envolvidas. E as suítes respectivamente.
Essa evidência da tendência do material jornalístico publicado, veiculado, repercutido, ser mais materialístico em detrimento do humanístico daria uma tese de mestrado de antropologia social cuja questão paradoxal que eu tomaria como pretexto de estudo seria: se a curiosidade for uma virtude predominante da natureza do indivíduo nas sociedades, por que estaria havendo através do tempo uma escalada de submissão ao poder dos valores de trocas, materiais? Começaria a reler a tese da ‘violência simbólica’ de Bourdieu, baseada na afirmação de que o homem está submetido ao hábito, espaço e capital – no meu modo simplório de ver, a tragédia das nações.
No que tange ao jornalismo, há duas verdades absolutas permeando este assunto: uma verdade é a de que um boa parte dos jornalistas admite que quem manda na redação é o patrão, dono ou responsável pelo capital da empresa, pelos salários. A outra verdade é a de que certos jornalistas juram pelo que há de mais sagrado que não submetem seu trabalho à direção da empresa, são isentos, jornalistas puro-sangue, investigam e publicam a verdade, doa a quem doer, até que uma matéria é vetada, fazem cara feia e são demitidos.
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Jornalista e escritor