Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O jornalismo fiel ao dono

A revista Veja tem dado bons exemplos daquilo que é mais criticável no jornalismo. Além de ter descambado definitivamente para a telenovelização da notícia, dá mostras de como funciona o jornalismo subserviente aos interesses da empresa que o controla.

A notícia parece vir pronta, independendo de qualquer apuração, de acordo com o interesse do patrão: quando o dono determina, abana o rabo e lambe os pés de qualquer um, como um doce poodle. Da mesma forma, a um sinal, vira pitbull.

A sorte é que esse tipo de prática jornalística é nocivo apenas para um certo tipo de leitor. É o caso daquele cara que sai por aí repetindo, ipsis literis, idéias prontas, como se fossem suas. O mesmo que Curtis White diz ser portador de uma ‘mente mediana’, o ‘indivíduo medíocre’ de que nos falava Jose Inginieros há muito tempo. Ou, para H. L. Mencken, o ‘homem inferior’ que sustenta a lucratividade da grande imprensa. Aquele que deve ser assustado e depois tranqüilizado para se manter presa desse discurso midiático: ‘Primeiro, amedronte-o com um bicho-tutu e corra para salvá-lo, usando um cassetete de jornal para matar o monstro’, ensinava Mencken.

Pensadores orgânicos

Vejamos que veículos como a Veja parecem ter o interesse de paralisar a capacidade crítica de seus leitores, de mantê-los na mediocridade intelectual, disseminando sua moral subserviente. Uma das estratégias para isso é a simulação de adesão a um ideário sócio-político.

O leitor acaba iludido em um pastiche ideológico. Pensa estar repetindo um discurso fundamentado acerca da realidade, quando na verdade está professando lugares-comuns vagos, criados apenas para desviar a atenção dos reais interesses dos financiadores desse tipo de jornalismo.

Para realizar essa tarefa, a Veja conta com seus ‘intelectuais orgânicos’, aqueles que são liberados a dar suas opiniões e incentivados a tecer comentários inteligentes. Os que assinam em baixo do que escrevem e assumem a autoria de seus pensamentos. Para essa forma de jornalismo, que parece se resumir ao objetivo de satisfazer interesses empresariais, esses pensadores orgânicos são fundamentais. São eles que falam pessoalmente ao leitor e simulam a adesão a um discurso sócio-político. São os colunistas, que hoje ganharam espaço privilegiado com os chamados blogs.

Mente mediana

A revista Veja tem um time de colunistas-blogueiros. Um deles, Diogo Mainardi, parece já ter conseguido se estabelecer como uma personalidade folclórica do ideário costumeiramente chamado de ‘reacionário’ ou ‘de direita’, uma espécie de discípulo de Olavo de Carvalho. Outro é Reinaldo Azevedo, que, tudo indica, provavelmente aprendeu muito com Francis Fukuyama e sua eternização do liberalismo econômico pela noção simplória do ‘fim da história’. Tudo o que não diz respeito ao pensamento único do capital é execrável ou, pior, démodé.

O governo Lula, por exemplo, é execrado pelos dois. Porém, o que é importante não é isso. Pouco importa se odeiam o presidente ex-metalúrgico ou não, pois isso parece depender de ordens superiores. Menos ainda importa o conteúdo de seus comentários. Tudo indica que são compostos de frases feitas, de idéias prontas e fatos ocultos, fidelíssimos no intuito de manter o patrão de bom humor.

O colunista-blogueiro Reinaldo Azevedo, no último dia 18 de setembro, publicou um texto ultrajado no qual condenava explicitamente a citação do pensamento de Karl Marx no livro didático público criado e distribuído pelo governo paranaense aos alunos do nível médio. Marx, todos concordarão – menos Azevedo e alguns portadores da ‘mente mediana’ – é um teórico consagrado, cujo pensamento merece sempre ser revisitado, mesmo pelos que o entendem criticamente.

Assédio aos professores

O alvo era o livro didático público paranaense de Educação Física, no qual um texto sugere aos alunos que refletissem sobre se o esporte não poderia estar sendo tratado como mercadoria na contemporaneidade. Nada mais salutar, pois essa é uma concepção corrente entre os estudos sociais contemporâneos que entendem que isso acontece não apenas com o esporte. Para Azevedo, porém, isso corresponderia a atacar o caráter competitivo do esporte e doutrinar as crianças para a subversão. Trágico para ele, cômico para nós.

O mais tragicômico é descobrir que, lendo o livro, se percebe que há, isso sim, o interesse de incitar o aluno a pesquisar e pensar sobre a suposta natureza competitiva humana. Isso, porém, para Azevedo, é quase um crime.

Após ler o texto do blogueiro anti-Marx, me pus a pensar sobre o caso. Entendi que sua gana deve ter relação com o fato da revista Veja ser publicada pela Editora Abril, que é proprietária das editoras Ática e Scipione, ambas especializadas em livros didáticos e que, graças à portaria 2.963/05 do Ministério da Educação, vêm amargando prejuízos e odiando ardentemente o governo Lula. Provavelmente, se os negócios andassem melhores, o amariam. Bastaria que o ministro Fernando Haddad permitisse que continuasse a prática de assédio aos professores por parte dos representantes das editoras da Abril, cessada pela portaria.

As crianças e o marxismo

Lembro, ainda, que a Abril e seus veículos têm por hábito bombardear as editoras concorrentes nesse ramo, havendo o prestimoso exemplo de uma recente campanha movida contra a Editora Nova Geração, de propriedade de Domingo Alzugaray, ex-diretor da revista IstoÉ. O problema está no fato de que o governo federal haveria comprado da Nova Geração, após consulta a docentes, 3,5 milhões de livros didáticos para estudantes e aproximadamente 60 mil livros para professores. Isso, com certeza, deixou fulo o pessoal da Abril.

Ficaram tão coléricos que o citado blogueiro, ao se referir ao livro Nova História Crítica, perde o prumo e chega a pedir, emocionado, que protejamos nossas crianças do ‘molestamento ideológico’. É claro que ele pode pensar e dizer o que bem entender, mas que é engraçado, ah, isso é.

Não é difícil supor de onde vem o furor ‘direitista’ em relação ao livro da Nova Geração. Também não é de se estranhar como surge o mau humor em relação ao livro didático público paranaense, ainda mais quando se sabe que tudo o que os blogueiros publicam deve receber o carimbo de ‘ok’ do patrão.

Ao editar e distribuir seus próprios livros, o governo do Paraná entra no rol dos concorrentes diretos da Abril. Fecha às editoras Ática e Scipione um rendoso mercado. Se isso for levado em conta, está explicada de forma bem convincente a raiva em relação ao livro que põe em xeque a lógica da concorrência como valor supremo. Parece estar mais uma vez desmascarada a simulação de pensamento da revista e seus colunistas. O que estaria em jogo seria simplesmente atacar a concorrência, nada de discordâncias teórico-políticas fundamentadas, muito menos preocupações com as pobres crianças doutrinadas para o marxismo.

Autismo tautológico

Não parece haver qualquer pensamento político aí. Parece haver, isso sim, uma cortina de idéias prontas, tecida para ocultar outros interesses e, infelizmente, desviar a atenção do leitor mediano da verdadeira lógica que comanda a produção de notícias das grandes corporações da mídia. Diziam os marxistas Theodor Adorno e Max Horkheimer: empresas não têm ideologia, têm negócios.

Mais uma vez, vemos ilustrada a velha máxima que determina que a diferença entre os partidários da esquerda e da direita está na seguinte definição: os da esquerda são militantes, lutam por propostas e ideais e estudam até os estéreis textos capitalísticos; os da direita são sócios, parecem lutar apenas para encher os bolsos e, com certeza, não podem sequer ouvir falar de Marx. Nenhum problema nisso, mas é preciso informar ao leitor o que se passa e como se passa.

O leitor mediano acaba iludido. Ao pensar que o que lê nos colunistas blogueiros de Veja é fruto de uma reflexão teórico-política, construída graças a uma boa educação teórica, pode estar sendo induzido a um erro e sair por aí repetindo o pensamento ready made que, na verdade, se contextualizado, é facilmente desmascarado.

Uma abordagem conhecida sobre a comunicação humana a difere da usada pelos cães por esta ser egocêntrica, ou seja, voltada para si. Quando um cão late, segundo essa teoria, não sabe se seu latido tem algum significado para outro cão. Se este outro cão responde, é apenas porque foi estimulado pelo latido, não porque tenha ‘algo a dizer’ ao primeiro cão. Se este é o mecanismo que rege a comunicação canina, muito provavelmente deve ser, também, a lógica desse jornalismo fiel ao dono: uma espécie de autismo tautológico nos moldes do já estudado por Lucien Sfez. Quem perde, como dito, é o leitor, que deveria ser encarado como o verdadeiro dono do veículo.

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Psicólogo, jornalista e mestre em Comunicação e Cultura