Esquecer o poder de influenciar opiniões e, com isto, moldar o comportamento social das pessoas é o mesmo que marginalizar as capacidades do jornalismo em sua essência. Mas também ignorar que o consumidor do produto noticioso é um ser emocional, por mais razão que o homem moderno tente empregar em seu cotidiano, é esquecer a essência que move cada pessoa sobre este planeta. Evoluímos e moldamos nosso mundo diante das necessidades e de nossas emoções.
No entanto, a reflexão em nosso meio profissional ou é envereda pelo lado analítico acadêmico ou para o jogo de erros e acertos, geralmente direcionados para os resultados econômicos. Deixamos de pensar no leitor como alguém que porta sentimentos que norteiam sua maneira de agir, refletir e se postar diante de uma situação. Na verdade, a visão do leitor sobre o produto jornalístico está há muito tempo entre as últimas prioridades de jornalistas e departamentos de marketing das empresas de comunicação.
Muitas vezes assumimos ares de frades dominicanos medievais, encarnados do espírito domini canis, cães do Senhor. Eram treinados nos monastérios, sob a rigidez das ordens religiosas militares, para identificarem bruxas, demônios e a corrupção da alma. Quantos doentes mentais foram torturados e mortos por essa equivocada percepção.
Essa visão radical, inquestionável, levou aos tribunais inquisitórios até os pobres gatos domésticos – que seguem o homem há 5 mil anos; tidos como parceiros do satanás, foram dizimados aos milhares. A causa direta foi um desequilíbrio ecológico tão intenso nos burgos e aldeias que a proliferação dos ratos e de suas pulgas trouxe a peste negra. Metade da população da Europa sucumbiu aos ‘castigos divinos’.
Repetição decrépita
O maior castigo do nosso oscilante humor jornalístico é a mistificação da imprensa em instrumento de intimidação. Nunca foi essa a função social, que é bem simples e clara: formar e informar – embora o exercício ilusório do poder seja, por vezes, exercido pelo repórter ou editor como um tirano subjugando a plebe: os donos da verdade absoluta, inconteste, treinados para farejar o mal, para reconhecer e exorcizar as hordas de demônios existentes em cada canto do mundo.
As coisas da vida estão longe de ser assim, uma dicotomia entre o bem e o mal. Todos sabemos disto. Logicamente que o jornalista vocacionado, aquele que tem a brasa acesa do repórter, nunca abrirá mão de cobrir assuntos polêmicos, denunciar e informar a sociedade sob o norte ético, do esforço pela neutralidade e retidão. Precisamos disso, cada vez mais.
Mas o bom humor parece algo até algo proibitivo em nossos jornais, por vezes impedido dentro das redações como sinônimo de falta de seriedade. Os nossos periódicos estão excessivamente carrancudos, chatos. Arrisco dizer que isso possa ser um resquício da Santa Inquisição, quando o riso era considerado obra da possessão demoníaca. Todos precisavam ser emburrados para serem aceitos como servos e tementes a Deus. E com o tempo isso virou sinônimo de confiabilidade, de seriedade e de credibilidade.
O jornalismo há muito deixou de ser embalado pelos réquiens, pelas marchas fúnebres. ‘A boa notícia é a má notícia’, uma criação do século 19, esgotou-se em si própria, na morbidez da repetição decrépita. Envelheceu e tornou o jornalismo algo muito parecido com um velho rabugento, resmungão e ranzinza, que se alimenta das próprias amarguras.
Números ruins
A saudosa Elis Regina (1945-1982) cantou em um de seus últimos álbuns a música ‘O primeiro jornal’, de Sueli Costa e Abel Silva. Uma bem humorada alfinetada, certeira e pertinente, ao comparar o efeito do rádio ao do jornal sobre o personagem.
‘Estar com você na primeira brasa/ Do cigarro/ No primeiro jorro da torneira/ Nos primeiros aprontos de um guerreiro/ De manhã/ Para que saias com alguma alegria/ Bem normal/ Que dure pelo menos até você comprar/ E ler o primeiro jornal’.
Elis tocou no ponto crucial de toda problemática do desinteresse em se ler o que está estampado nas páginas dos jornais, que de todas as mídias é o mais exigente em atenção, pois exige o esforço da concentração, da leitura e, sobretudo, porque é pago. Os noticiários assustam mais do que informam, isto é fato. Além de ter se transformado num instrumento para colocar em xeque a auto-estima de quem os consome.
Além do mais, praticamente todas as linhas editoriais são iguais ou de grande semelhança entre si. Surge então uma outra questão: postergamos os diferenciais por medo de errar ou mesmo de ousar. Este é o mal da clausura, o isolamento voluntário de toda complexidade que nos cerca. Não quebramos o paradigma da boa notícia é a má notícia.
Para chegar a essa conclusão e reportar o assunto como uma forma de alerta, promovi em meus tempos de professor na Universidade do Vale do Paraíba (Univap), uma enquete entre os mais de 250 estudantes que tínhamos no curso de jornalismo. As perguntas foram básicas, mas o resultado é surpreendente.
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91% dos alunos não se sentem estimulados a ler jornais;**
apenas 5% dos 9% restantes lêem jornal quando estão no trabalho;**
menos de 1% assina algum tipo de publicação, incluindo jornais;Perguntados sobre os motivos que os afastam da leitura de jornais as principais respostas foram:
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98% ficam deprimidos e sem esperança no futuro depois da leitura;**
26% apenas acreditam que os jornais estão retratando a realidade social;**
82% acreditam que os jornais abusam do sensacionalismo para vender e é essa sua função como empresa de comunicação;**
99% rejeitam a idéia que a sociedade em que vivem é decadente e criminosa;**
97% preferem assistir a um telejornal para se informar;**
87% querem trabalhar em televisão.Ganhar leitores
Evidente que como profissionais de imprensa, num país onde as autoridades sempre surgem como foco de corrupção, escândalos de todos os gêneros, abusos dos mais diversos, miséria e tantos outros temas dramáticos, a negação em mostrar tudo isso seria um ato criminoso por parte dos profissionais da categoria. Mas ficamos tediosos como o passar do tempo.
Quem já leu uma reportagem de Osmar Freitas Jr. sabe que é impossível não se divertir com sua genialidade, mesmo ao abordar temas sérios e por vezes complexos. Teríamos aí uma série, infelizmente pequena, de ótimos repórteres e textos com sensos de humor e de crítica ímpares. Neste rol, vale lembrar das histórias de José Maria Tomazela, do Estado de S.Paulo, como a do bode que se tornou funcionário público, do boteco com cartão de ponto e a reportagem da égua de olhos azuis. Mas são poucos os que ainda se arriscam nesse caminho. Até mesmo porque para praticar esse gênero é preciso conhecer muito bem os atalhos da construção de um ótimo texto e dosar o humor sem cair na vulgaridade.
Os que já tiveram oportunidade de conviver com outros colegas em coberturas, coletivas de imprensa ou mesmo em encontros casuais em uma ou outra pauta, sabem que as conversas são divertidas, criativas e cheias de bom humor. Mas essa característica geralmente não migra para o produto final. Quantas vezes os jornalistas flagram situações hilárias que são abandonadas no texto, sob a justificativa de que leitor compreenderá aquilo como uma falta de respeito…
Nosso objetivo é ampliar a base de leitores, não deprimi-los ou fazer com que troquem o dinheiro da assinatura de um jornal ou revista por investimentos em um psicoterapeuta. Uma coisa é seriedade, outra completamente diferente é rabugice. Ao ver um leitor dar uma tremenda gargalhada ao ler uma reportagem, esse texto com certeza conseguiu se comunicar de maneira exemplar com seu público.
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Júlio Ottoboni é jornalista especializado em jornalismo científico