Por uma jogada dessas do destino, fui guindado diretamente das tendas do 5º Congresso do MST, em Brasília, para um luxuoso quarto de hotel em São Paulo, pago pela companhia aérea. O motivo: problemas na conexão em Congonhas. A súbita variação de ‘temperatura social’, olhando para o mármore branco importado do sofisticado banheiro, leva à reflexão: durante dois dias, convivi com os homens e mulheres do movimento, dormindo em colchões improvisados, fazendo a higiene diária em pequenos ‘caixotes de plástico’ e tomando banho (quando havia água) em vestiários coletivos improvisados às margens do Ginásio Nelson Nilson. Os camponeses se submetem a tudo isto em busca da organização social que lhes permita avançar na Reforma Agrária, não só para si, mas para todos os demais.
Agora, entre os apressados e elegantes transeuntes do saguão do hotel 5 estrelas, procuro imaginar quem estaria por ali pensando generosamente no bem coletivo da humanidade e disposto a pagar algum preço por isso com a intensidade dos militantes do MST.
Invertendo a manchete
Ainda no saguão, por cima do ombro do homem distraído, observo a ‘plástica e cirúrgica’ matéria do ‘jornalista-do-mármore-branco’: ‘MST quer ir além da Reforma Agrária’, tecendo logo abaixo a teia na qual espera aprisionar corações e mentes, parafraseando, em sinopse: ‘Cuidado, eles querem pegar tudo que é seu! Não querem só terra, querem mais, ouviu? Querem mais! Eles querem o nosso mundo de mármore branco!’ Não sei se querem tanto, mas um bom chuveiro, instalações dignas, menos polícia e mais respeito, para o maior movimento social do país já seria um bom começo.
É que o clima ameno dos 22 graus do mármore branco, constatei, é um fator inibidor de sinapses mais profundas que relacionem causa e efeito: o pessoal, lá dos banheiros coletivos, já entendeu o que os donos do mundo de mármore branco fingem não saber, ou seja, a correlação entre modelo econômico e distribuição da terra, entre modelo econômico e modelo de agricultura, entre modelo econômico e modelo de educação, entre modelo econômico e tudo, inclusive a mídia. E, se me permitem, já que sou da categoria: só um ou outro profissional formado nas melhores faculdades públicas do país – que nasceu no mundo do mármore branco e, portanto, fez a rápida transição para as mídias que falam do mundo do mármore branco – pode se dar ao luxo de tantos disparates amparados pela conveniência e incestuosidade da classe que o acolhe.
O movimento social quer um novo modelo econômico e isto já faz tempo, não é novidade. Talvez os ‘jornalistas-do-mármore-branco’ não queiram um novo modelo econômico porque este que está aí lhes convém, e muito. Poderíamos até inverter a manchete: ‘A grande imprensa defende o modelo econômico de sua classe social’, o que soaria mais honesto.
Alegria de ser coletivo
Todas as agruras da estadia em Brasília não tiram a alegria perene de quem se emancipa, inclusive de suas condições sociais momentâneas, em nome de uma causa maior: o MST é um povo alegre e deu ‘show de organização’, segundo outro jornalista, menos mármore. Um apito, levantam. Dois, em fileiras, sem desertores. Têm suas ‘brigadas’, cada uma identificada, regionalmente, em torno dos valores e heróis que eles próprios elegeram.
Na hora da festa, a cultura, que vem de dentro, surpreende, assim como a satisfação de ser coletivo estampada em cada face: dançam no ritmo da igualdade, forró, axé, vanerão, hip hop. Até percebi um policial lendo com atenção dedicada a história da greve de 1988, em uma tenda, com as fotos dos operários-mártires assassinados pelas balas do exército do Sarney, esse mesmo que agora acha que não existe democracia na Venezuela. Também é notório que o Lula não foi convidado e o Paraguai acordou, entre muitas outras tantas novidades. Estes fatos dão manchetes muito melhores do que aquela numa América Latina que já não existe da forma que os ‘jornalistas-do-mármore-branco’ queriam.
Mas sou obrigado a concordar com o fulano. O MST talvez queira ir além da Reforma Agrária… e tomara que o consiga! Nada pessoal. Não é que eu não goste de mármore branco. É que eu queria que fosse para todos.
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Jornalista e escritor, Curitiba, PR