Infelizmente, um dos melhores momentos para a avaliar a qualidade do jornalismo que se pratica na mídia é quando acontece uma catástrofe. A tragédia vivida pela cidade do Rio de Janeiro não podia ser, e não foi, uma exceção.
Primeiramente devemos assinalar a falta absoluta de cronistas relatando de forma cronológica os fatos que aconteceram, ou estão acontecendo, para chegar à situação presente. Hoje por hoje, o uso indiscriminado da tecnologia parece indicar que já não é mais necessário descrever as diferentes situações utilizando as ‘velhas’ técnicas da pirâmide invertida, composta ou normal. Hoje é suficiente apresentar infinidade de imagens que mostrem ‘ao vivo’ a crueldade da realidade, sem adicionar relatos que permitam compreender os fatos. Para piorar a situação, neste caso específico da tragédia no Rio, a principal rede da cidade, e do país, a Rede Globo, usou e abusou da transmissão de imagens ‘ao vivo’ geradas pelas próprias câmaras de vídeo da prefeitura, mostrando, na verdade, a falta de equipes – humanas e tecnológicas – prontas para fazer uma produção séria de notícias ante os acontecimentos que surpreenderam não só ao Brasil todo, mas também ao mundo.
Dentre outros erros, podemos assinalar a entrevista com o governador do estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, veiculada pela Globo News na terça-feira (6/4) no jornal das 7 horas. Nessa reportagem, as jornalistas de plantão se limitaram a abrir os microfones para que o mandatário discursasse mais sobre as obras que o governo do estado e o governo federal vêm fazendo na cidade do que falar acerca das providências com respeito à tragédia do momento. As jornalistas não tiveram o menor profissionalismo para fazer dita entrevista, já que em nenhum momento interromperam o governador – em campanha eleitoral explícita – para que informasse sobre as ações que o seu governo estava providenciando no sentido de minimizar os problemas da população atingida pelo fenômeno natural. Não só isso. Num ato de irresponsabilidade inacreditável, o governador pediu ‘pelo amor de Deus’ que os moradores deixassem suas casas localizadas nas áreas de risco. Não ficou claro para onde teriam que dirigir-se esses moradores: seria para os quartéis? Para as escolas? Para outra cidade? Ou talvez para outro país? As jornalistas não souberam perguntar para onde as pessoas deveriam se dirigir, ‘esquecendo’ uma das funções básicas do jornalismo, que é informar, perguntando às fontes mais apropriadas, neste caso o governador, claro.
‘Opinadores’esquecem jornalismo
Os jornalistas deveriam ser uma ponte entre a população e nossos empregados (prefeitos, governadores, presidente, vereadores, deputados etc.). Mas alguns deles parecem trabalhar de forma direta para a assessoria de imprensa, limitando-se a ‘informar’ os diferentes pontos de vista oficiais. Como se esta situação não fosse grave, imediatamente depois – para não dizer na mesma hora dos acontecimentos – a mídia ‘globalizada’ começou a gerar diferentes opiniões, na maioria dos casos sem bases rigorosas para divulgar.
Já no ano de 2009 publiquei um artigo neste mesmo Observatório, intitulado ‘Chuvas no Brasil: O jornalismo ambiental ausente’. Infelizmente, poderia ser copiado aqui quase na íntegra, posto que nada mudou desde então. Nesse texto assinalava a tendência dos jornalistas locais e internacionais de utilizarem os conceitos de ‘mudança climática’ ou ‘aquecimento global’ para tentar explicar alguns dos desastres ecológicos locais ou mundiais sem destacar as verdadeiras origens dos desastres, confirmando uma linha de ‘esquecimento global’.
A editorialista Miriam Leitão, da Globo, não é uma exceção. Na última quarta-feira (7/4) destacou a geografia como causa das enchentes no Rio de Janeiro. Ora, esse problema no Rio – que infelizmente ocorre em muitas outras cidades do Brasil – não é geográfico, ou consequência do aquecimento global; é resultante da ocupação desordenada do solo urbano, resultante do crescimento humano descontrolado que vem sofrendo o país desde a década de 1970, duplicando a população até chegar aos quaase 200 milhões de habitantes na atualidade. Os ‘jornalistas opinadores’ esquecem de falar das trasposições de rios, esquecem de falar dos desmatamentos etc. Na verdade, esquecem de fazer jornalismo científico, jornalismo ambiental, ou, talvez, para sermos justos, esqueçam de fazer jornalismo.
‘Pau pra toda a obra’
Provavelmente chegamos a esse ponto em consequência da geração de jornalistas multifuncionais, como parece ser a tendência da rede Globo, que utiliza Miriam Leitão para opinar sobre economia, sobre ecologia e até mesmo sobre saúde, como fez na semana passada, quando ‘analisou’ a pesquisa do Ministério da Saúde sobre a amelhoria do estado de saúde dos brasileiros. Dentre outras coisas, a jornalista destacou que mais brasileiros estão contratando planos privados de saúde, ‘esquecendo-se’ de refletir que contratar planos privados não demonstra uma melhora, mas, pelo contrário, indica que as pessoas não confiam no sistema público pelo qual pagam ingentes somas de impostos sem receber a quantidade e qualidade de serviços que esses pagamentos deveriam oferecer. A referida análise simplista foi coroada com mais uma irresponsabilidade ‘opinatória’ quando a jornalista ressaltou o aumento dos casos de depressão na população brasileira ressaltando ser resultante da falta de atividade física e da tendência ao sedentarismo. Na verdade, desconheço se Miriam Leitão é médica, mas sim, posso ter certeza que tal afirmativa denota uma irresponsabilidade suprema, já que a depressão é consequência de inúmeros fatores.
Considero Miriam Leitão uma ótima analista de economia. Possivelmente, os erros que comete a cada dia serão o resultado da tendência que vem se consolidando nas grandes redes: o ‘jornalista 4×4’ (‘pau pra toda obra’), uma demonstração do ‘esquecimento’ por parte das empresas da importância de haver especialistas em algumas disciplinas concretas do jornalismo, nesses casos o jornalismo ambiental, o jornalismo científico ou o jornalismo médico, para citar alguns exemplos. E quem paga por isso (em todos os sentidos) é a sociedade.
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Químico, doutor em Fisiologia pela Universidad de Buenos Aires, Argentina, pós-doutor em Neurociência pela Universidad Complutense de Madrid, Espanha e Universidade Federal da Bahia – Diretor da agência Comunicación Científica