Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O lide no pé

A edição da matéria sobre o concurso de Miss Rio de Janeiro na página ‘Gente Boa’ de sexta-feira (29/2), do ‘Segundo Caderno’ de O Globo, inspira uma interessante indagação sobre se a notícia – ou, se preferirem, o lide do assunto que vai ser coberto – é também uma questão geracional do olhar que está reportando, apesar das hierarquias em vigor encontradas nos manuais de redação, tanto no que diz respeito à estruturação do texto como ao critério sobre o que vai ser editado para chegar ao conhecimento do público.

‘O que é isso?’, ‘Quem ganhou?’, e ainda, ‘O que é isso e quem ganhou?’ são perguntas que vão indicar o caminho da construção da notícia. Para a minha geração, que nasceu sob o signo de Marta Rocha e o inconformismo de pais e avós por duas polegadas a mais nos quadris terem afastado a bela baiana da conquista do cetro e a coroa de Miss Universo, concursos dessa natureza são familiares e a pergunta que pauta a notícia é ‘Quem ganhou?’.

Fidel no Big Brother

Daí que – qual não foi a surpresa – só fui encontrar a minha pergunta geracional no pé da matéria, e a foto da vencedora, pequena, em meio a outras fotos, enquanto a principal, grande e servindo para ilustrar a notícia do concurso, se referia a uma outra moça. Foi aí que tudo começou a me interessar. A pergunta já não era mais a da minha geração. O que passou estar em jogo agora era ‘O que é isso?’. Nessa perspectiva, o sentido da edição e do ‘lide no pé’ tem tudo a ver, e pode ser entendido como ‘Alô, alô, gente que está chegando agora, concurso de Miss é torcida organizada, duelo entre macacas-de-auditório – ops, onde se lê macacas-de-auditório, entenda-se fãs –, sempre um ambiente com ar de glamour que flerta com o trash e o divertido e é esse espírito de brincadeira o que justifica a sua realização nestes tempos em que as beldades estão à solta por todos os lados, expostas como filé mignon nas bancas de jornais ou desfilando tranqüilas suas esculturas naturais ou produzidas nas ruas, praias ou onde bem entenderem’.

Ainda nessa rica esteira do ponto de vista geracional, uma amiga comentou, impressionada, a reação dos participantes do Big Brother à informação dada pelo animador Pedro Bial de que Fidel Castro tinha renunciado: nenhuma. E me veio a pergunta: qual seria o lide da matéria sobre a renúncia de Fidel? E ainda: seria notícia? Uma ilhota, povoada de baixa renda que não produz nem roqueiro… Olhando por um ângulo otimista, quem sabe essa não era a oportunidade para Cuba ser deixada em paz?

Nova linguagem editorial

A pergunta como representação do que está implicando aparece de modo bem destacado na matéria de Eduardo Fradkin, ‘O meio é a mensagem na arte do File’, publicada no dia seguinte, também no ‘Segundo Caderno’ do Globo. O artista plástico chinês Jiacong Yan, que participa do Festival Internacional de Linguagem Eletrônica (File) no Rio de Janeiro, chamou a atenção para o fato de que o modo como a tecnologia vem sendo usada na arte está provocando no público a pergunta ‘como aquilo foi feito’ em substituição ao ‘por que foi feito’.

Como reação ao que parece considerar uma perda na relação entre habilidade e subjetividade, Jiacong diz que tem pintado mais porque ‘ninguém me pergunta como eu faço minhas pinturas, mas por quê’. E conclui: ‘Na arte tecnológica, o lado comercial é muito forte. Muitas empresas financiam artistas. Nenhum deles fará uma performance em que destruirá um computador com um bastão porque nenhuma empresa pagará por isso’.

De volta às misses, por muitas razões a edição do ‘Gente Boa’ interessa à análise mais cuidadosa. A foto principal, que não casa com o título, indica que cada um desses recursos se refere a um aspecto do acontecimento – o concurso, em si, e a vencedora. Ambos ganham o mesmo peso e acabam com o imperativo da escolha, o trágico dilema do ser humano que a pós-modernidade se empenha tanto em eliminar. A concepção titânica da edição ‘tudoaomesmotempoagora’ desafia o cânone ainda em curso do fazer jornalístico. Tenha sido o motivo que for, o fato é que o retorno das misses às páginas parece ter exigido uma nova linguagem editorial. É um experimento a ser considerado e debatido por nós que já estamos aqui há mais tempo.

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Jornalista, professora e doutora em Semiologia pela UFRJ