No artigo que escreveu neste Observatório (nº 330, ver remissão abaixo) sobre o novo e excelente livro de Zuenir Ventura, Minhas Histórias dos Outros, o jornalista Luiz Cláudio Cunha assinala uma importante passagem da obra: as dez páginas do capítulo ‘Um suicídio mal-contado’, nas quais Zuenir, segundo Luiz Cláudio, faz um mea-culpa ‘raro em profissionais de sua grandeza’ ao narrar o ‘estranho pacto de silêncio da imprensa em 1984 envolvendo a morte do escritor Pedro Nava, o maior memorialista do país’.
Fui citado por Luiz Cláudio – pois Zuenir, ele e eu trabalhávamos, então, na revista IstoÉ, que fez parte desse pacto de silêncio. Em boa parte por sua generosidade para com os amigos, em parte talvez pela passagem do tempo, Luiz Cláudio, no artigo, me deixou em situação mais lisonjeira do que a que efetivamente protagonizei, como redator-chefe da revista naquele 1984.
Para ajudar a lançar mais luz em um episódio marcante, que tem a ver com o dever do jornalista e com a ética profissional, trago, neste texto, a lembrança que tenho dos fatos.
Chantagem de um garoto de programa
Nava morreu no dia 13 de maio de 1984, um domingo. Segundo o relato de Zuenir, perto de nove horas da noite o grande escritor acabara de ler para sua mulher, Nieta, o texto de um discurso a ser proferido dias mais tarde, na solenidade em que receberia o título de cidadão fluminense da Assembléia Legislativa do Rio, quando recebeu um telefonema. A mulher atendeu, e uma voz masculina pediu para falar com Nava. Ele pegou o fone, ouviu em silêncio, e desligou, com ar transtornado.
Pouco depois, aproveitando uma ida de Nieta ao banheiro, apanhou um revólver comprado quatro anos antes e saiu pelos fundos do apartamento em que o casal morava na Glória, no centro do Rio. Perambulou pelas ruas do bairro, voltou para perto do prédio em que morava e, às 23h30, junto a uma árvore, meteu uma bala na cabeça. Ia fazer 81 anos.
Zuenir era chefe da sucursal da IstoÉ no Rio. Colocou na apuração dois jornalistas que hoje são colunistas de renome: seu subchefe, Arthur Xexéo, e o repórter José Castello. Num rápido trabalho, e indo checar um zunzum que já circulava em redações cariocas, eles chegaram a um garoto de programa do baixo meretrício carioca – um certo Beto – que, tudo indicava, tinha uma ligação com Nava. O eventual chantagista seria um outro garoto de programa, convocado pelo primeiro, a uma certa altura da relação com Nava, para sessões em que o escritor funcionaria como voyeur da dupla e que o reconheceu.
O tal Beto não forneceu provas definitivas de convivência com o escritor – cartas, fotografias –, mas sua narrativa ostentava tal riqueza de detalhes, inclusive sobre hábitos e características de Nava, que convenceu Xexéo de que correspondia à verdade. Castello não estava tão convencido.
A pressão para não publicar nada
Enquanto a imprensa tentava descobrir porque cometera suicídio um homem maduro, respeitado, bem-sucedido e ainda cheio de projetos (o sétimo volume de sua monumental obra memorialística, Cera das Almas, estava em andamento), uma legião de amigos e admiradores de Nava – escritores, editores, intelectuais de outras áreas – se mobilizava para que a versão da eventual chantagem de um garoto de programa não vazasse. Seria questão de foro íntimo, personalíssima, problema pessoal do morto e, além de tudo, acarretaria terríveis conseqüências para a viúva se divulgado.
Zuenir viu-se intensamente pressionado pelo meio cultural. De sua parte, considerava que o relato provinha de fonte pouco confiável. No final, passou as informações para a sede da revista em São Paulo, enviou a reportagem, contendo um curto parágrafo com a hipótese de chantagem sexual, mas manifestou vigorosamente sua oposição a que o parágrafo fosse publicado.
E aqui chegamos a meu papel na história. Em seu artigo, Luiz Cláudio Cunha, então chefe da sucursal da revista em Brasília, lembra-se de termos trocado um telefonema a respeito do assunto, após a publicação da matéria. Estava, diz ele, indignado com o silêncio geral da imprensa sobre uma versão que pelo menos também a Veja havia apurado sem publicar, mas especialmente aborrecido com a IstoÉ. No artigo, ele relembra parte do que me disse: ‘Setti, mal comparando, é como se os jornalistas, preocupados com a repercussão de um tiro no peito, tivessem pactuado em agosto de 1954 uma versão de que Getúlio morrera escorregando na banheira… É um absurdo não contar o que aconteceu’.
A verdade é que fui omisso
Em sua narrativa, Luiz Cláudio diz que eu também defendera a publicação, e que, em seu livro, ‘Zuenir relembra a firme posição de Setti, voto vencido na época’. A seguir, reproduz declarações que prestei a Zuenir sobre o caso para o livro, 21 anos depois dos fatos: ‘Não tenho a menor dúvida de que violamos nosso dever de jornalistas e deixamos de cumprir nossa missão para com o leitor. O preconceito foi mais social do que sexual. Poupamos o Nava por ele ser o Nava. Se fosse um modesto jogador de futebol ou cantor, teríamos publicado’.
Essas frases efetivamente representam com fidelidade o que penso agora, em 2005. Mas não têm nada a ver com minha atitude de então. A verdade é que, como redator-chefe de IstoÉ, fui omisso. Não dei ao caso a importância e a reflexão que ele merecia. O diretor de redação da revista, Mário Alberto de Almeida – que assumira havia algumas semanas –, já em dúvida quanto a publicar ou não a informação, convenceu-se dos argumentos de Zuenir e decidiu cortar a matéria. Ele me mostrou o texto – lembro-me até hoje do corte que, com uma caneta Bic, apôs na lauda contendo o parágrafo em que timidamente o texto tocava no tema-tabu. Mas Mário era um diretor aberto ao diálogo, que me ouvia sobre todas as questões e delegava muito. Eu poderia perfeitamente argumentar em favor da publicação daquele parágrafo, mas não o fiz.
Lembro-me, sim, de ter falado com Luiz Cláudio ao telefone com a revista nas bancas – falávamos várias vezes por dia. Lembro-me igualmente de que critiquei a atitude da grande imprensa e lamentei a da nossa própria revista. Se não me incluí de alguma maneira como co-responsável por aquela decisão, quando menos por omissão, cometi um erro gravíssimo. Minha memória indica, porém, que contei a Luiz Cláudio o que se passara, e que é a generosidade de amigo que turvou sua lembrança, impedindo-a de trazer meu pequeno papel inglório à tona.
Tancredo, guerra Irã-Iraque…
Claro que, como qualquer pessoa naquela função, eu estava sobrecarregado naquela semana – aliás, em qualquer semana. Parte de minhas obrigações era, no fechamento da revista, ler com o máximo rigor todas as matérias de todas as editorias antes de seguirem para a composição, inclusive boxes, títulos, olhinhos e legendas. Os textos sofriam cortes, acréscimos e mudanças, muitas vezes eu pedia complementações aos editores, em algumas ocasiões as matérias voltavam para ser refeitas ou, como se diz, elas ‘caíam’, ficavam fora da edição.
Mário, como diretor, envolvia-se em inúmeras tarefas na empresa, em contatos externos, na gestão do negócio. Presidia a reunião de pauta semanal e, por meu intermédio ou em conversas com os editores, acompanhava o andamento das principais reportagens. Até por falta de tempo, porém, selecionava o que lia – em geral a capa e uma ou outra reportagem maior.
Na semana que se seguiu à morte de Nava, não faltava notícia. Tinha havido uma inédita rebelião de bóias-frias em São Paulo. O PMDB decidira disputar a sucessão do general-presidente João Figueiredo no Colégio Eleitoral, e eram cada vez maiores os indícios de que o governador de Minas, Tancredo Neves, sairia candidato. O ex-craque Edu, irmão de Zico, assumira como técnico da seleção brasileira de futebol. O cinema brasileiro vivia uma fase suficientemente movimentada para merecer uma reportagem de capa de 8 páginas e 2 boxes. O ataque de um jato Phantom F-4 iraniano a um superpetroleiro saudita ameaçava alastrar a guerra Irã-Iraque pelo Oriente Médio. E assim por diante.
Descumprindo um dever
Esses e outros temas jorravam sobre minha mesa na forma de laudas. Mário resolveu ler algumas matérias e me disse que não me preocupasse com o caso Nava – um dos últimos textos a fechar, na tarde de uma quinta-feira (a revista reservava a manhã de sexta para os assuntos quentes, normalmente nas áreas política, econômica e internacional). Ele trataria diretamente com Zuenir. Avisou também o editor de Cultura, Geraldo Mayrink, que ainda hoje se lembra de que, depois disso, recebeu do diretor a matéria já cortada para que se procedesse ao fechamento. Mayrink não contestou a decisão de suprimir o parágrafo e nunca chegou a saber dos detalhes que Zuenir passara a Mário Alberto e que hoje estão em Minhas Histórias dos Outros.
No final das contas, IstoÉ saiu com três páginas sobre a morte de Nava, lembrando que a obra do escritor ‘pela variedade, costuma ser comparada ao mesmo tempo à de Euclides da Cunha, Machado de Assis e até mesmo à de Marcel Proust, pela capacidade de reconstituição do passado’. Sobre o suicídio, o texto estava crivado de palavras como ‘enigma’ e ‘mistério’. Havia algum subtexto – a lembrança da pouco conhecida preocupação do autor com o erotismo, uma frase pinçada de uma entrevista em que ele dizia não ter ‘preconceito moral, preconceito de espécie alguma’, a declaração de um parente de que ‘se ele morreu para ocultar alguma coisa, essa coisa deve permanecer oculta’.
Mas a chave para explicar o desaparecimento de um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos fora omitida dos leitores, como de resto fez toda a grande mídia na época. Hoje, não tenho a menor dúvida de que descumprimos nosso dever de jornalistas e deixamos de lado nossa missão para com o leitor no episódio porque a existência do michê, e a possível chantagem, constituíam circunstâncias absolutamente relevantes sobre o suicídio de uma figura pública. Com sua omissão, deixamos sem explicação para os leitores um acontecimento dramático que, sim, tinha ali uma explicação plausível.
O livro de Zuenir deixou bem claro para mim que um pedaço desse papelão me coube. A sobrecarga de trabalho não impedia que dedicasse um mínimo de atenção a um assunto tão relevante. Disso me arrependo ainda hoje.
******
Jornalista