Walter Avancini, falecido em 2001, aos 66 anos, amava a literatura brasileira e a televisão. Como poucos, soube juntar as duas modalidades de expressar o Brasil. E obteve sucessos retumbantes, ao mesclar a qualidade técnica da televisão brasileira com as ousadias criativas de nossas letras. Foram muitos os êxitos. Destaquemos a minissérie Grande Sertão: Veredas, de 1985, baseada num dos melhores romances brasileiros do século 20, publicado originalmente em 1956, que agora chega às livrarias em devedê. Seu autor é João Guimarães Rosa, mineiro de Cordisburgo, falecido no Rio, em 1967, aos 59 anos, que, cônsul do Brasil em Hamburgo, contando com a mulher, Araci, a quem dedica o livro, salvou muitos judeus perseguidos pelos nazistas.
Até Avancini, a obra tinha sido considerada inadaptável, dadas as sutis complexidades do tema, das tramas e das personagens. Os críticos diziam o mesmo de O tempo e o vento, mas Paulo José demonstrou que era possível, sim, e, como Avancini, levou à televisão outro grande escritor brasileiro que é Erico Verissimo.
Antes digamos que, se comentamos um, não esquecemos os outros trabalhos dele. Só na antiga TV Excelsior, onde começou, dirigiu 11 adaptações, entre as quais A deusa vencida, em 1965, quando lançou Regina Duarte, que se tornaria a namoradinha do Brasil no gênero que logo se consolidaria como hegemônico no Brasil, a ‘novelas das oito’. Já apareciam também Ruth de Souza, Karim Rodrigues e o casal Glória Menezes e Tarcísio Meira, cinco atores que marcariam para sempre a televisão no Brasil com desempenhos memoráveis. A deusa vencida teve nova versão, em 1980, pela TV Bandeirantes, com o cantor Agnaldo Rayol fazendo o papel que Tarcísio Meira fizera na versão anterior.
Os Sertões
Aos mais jovens, lembremos que o Itamaraty já teve diplomatas de alta qualidade intelectual, quando os cargos eram ocupados por critérios de mérito e não para acomodar companheiros de partido político que estivesse eventualmente no poder.
Aliás, existe coisa mais eventual do que o poder? Existe, sim. Talvez a moda. Tudo o que está em moda, está saindo de moda, já que seu caráter é passageiro. Esta é a lei da moda. Depois tudo volta outra vez. Tanto a moda como o partido, ambos disfarçados em novas roupagens. É só guardar no armário a roupa ou o partido e aguardar a vez. Os que estão no poder nem sempre lembram esta verdade: o poder é efêmero.
Num certo dia, no Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, na década de 1970, vi o ex-presidente Emilio Garrastazu Medici sendo evitado por grupos de passageiros que, para embarcar, queriam desviar-se da figura. E ele estava ali, sereno, sorrindo, ainda inebriado das grandes apoteoses públicas que presidiu, usando como estratégia de aceitação popular do poder que ele arrebatara pela força o tricampeonato que a seleção brasileira obtivera no México, e procurando ser visto nos grandes estádios com o radinho de pilha ao ouvido.
Uma das melhores interpretações de Grande Sertão: Veredas continua sendo As Formas do Falso (Editora Perspectiva), tese de Walnice Nogueira Galvão, aluna de Letras da USP, universidade pela qual doutorou-se e da qual é hoje professora titular. Ela é referência também na interpretação da obra igualmente vulcânica de Euclides da Cunha, carioca de Cantagalo, que, como o mineiro, também abordou o sertão como palco de lutas do povo brasileiro. Professor concursado de Lógica no Colégio Pedro II, o autor de Os Sertões seria assassinado no Rio, aos 43 anos, em 1909, pelo comborço. Não precisam ir aos dicionários. É feminino de comborça, palavra que nos veio provavelmente do celta combortia (pronuncia-se combórcia), designando, em relação à esposa, a amante ou concubina do marido.
Biscoito fino
Há alguns desempenhos memoráveis no devedê ora posto à venda. Tarcísio Meira talvez tenha feito ali o melhor papel de sua vida, na pele de Hermógenes, o jagunço traidor, que mata o jagunço ético Joca Ramiro (Rubens de Falco), pai de Diadorim (Bruna Lombardi), jovem que atrai o amor e a paixão de Riobaldo (Tony Ramos), personagem e narrador do romance. Outros destaques foram Ney Latorraca como Padre Pontes, Yoná Magalhães como Maria Mutema, a mulher que mata o marido, derramando chumbo derretido em seus ouvidos, e depois o padre a quem conta, em confissão, o terrível pecado, matando os dois pelos ouvidos.
Mário Lago faz o Compadre Quelemém, conselheiro espírita que ajuda Riobaldo a entender a si, aos outros e ao mundo. José Dumont faz o fascinante Zé Bebelo, jagunço que quer ser deputado (hoje, vários políticos são ou querem ser jagunços). O julgamento de Zé Bebelo numa assembleia de bandos unidos, moderados pela autoridade emblemática de Joca Ramiro ,é um dos grandes momentos do livro e da minissérie. Ana Duzuza é vivida por Maria Helena Velasco, que em Caminho das Índias fez uma parteira.
O teatro, o cinema e a televisão jamais se arrependeram de recorrer à literatura brasileira, fazendo sempre grandes trabalhos. O devedê ora nas bancas é um dos pontos mais altos do casamento entre a a televisão e as letras no Brasil.
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Escritor, professor da Universidade Estácio de Sá e doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e De onde vêm as palavras