Os jornais devem cobrir as cidades em que estão sediados – e cobrir bem, sob pena de perder o precioso público local, determinante na conformação da identidade de um veículo impresso.
Nas capitais, em especial nas maiores, a cobertura de cidades (ou metropolitana, como se queira) é uma operação de vulto. Exige apuração criativa, acompanhamento constante da administração municipal, conhecimento das questões urbanas, edição antenada com a vida real e recursos, sobretudo humanos. Mas, também em função da crise que encalacra as empresas de mídia, faltam repórteres para garantir aos jornais a necessária sintonia com o pulso das ruas – e os que há parecem admitir uma espécie de servidão voluntária a pautas previsíveis e burocráticas.
Tome-se por exemplo o problema do lixo urbano, dramático até mesmo em cidades menores, que relegam ao desleixo os seus aterros sanitários. Numa metrópole como São Paulo são produzidas 8.700 toneladas diárias de lixo, informa O Estado de S.Paulo (11/2/04, pág. C 1). Em cidades deste porte, com tamanha escala de produção de resíduos, a coleta seletiva do lixo é uma idéia recorrente e uma providência simples do ponto de vista conceitual, embora se saiba que o custo de sua implantação não é pequeno.
A primeira tentativa estruturada de se estabelecer a coleta seletiva de lixo no município de São Paulo deu-se no governo da prefeita Luiza Erundina (1989-1992), com maior ênfase nos dois últimos anos de seu mandato. À época, criou-se o programa, montou-se uma base para o projeto crescer – mesmo porque ações desse tipo só têm sentido se preparadas para ampliação contínua – e, no governo seguinte, de Paulo Maluf, a prefeitura literalmente jogou no lixo tudo o que havia sido feito até então. Depois de 8 anos de política de terra arrasada também nessa área (governos Maluf e Celso Pitta), a iniciativa foi retomada pela administração Marta Suplicy.
Sola de sapato
Volta e meia os jornais retomam o assunto. Foi o caso do Estado de S.Paulo, na edição citada, que chamou na capa (‘Coleta seletiva engatinha em SP após 12 meses’), acima da dobra, a matéria que abre o caderno ‘Cidades’ sob o título ‘Coleta seletiva municipal faz um ano. Tímida’.
O texto, assinado por uma dupla de repórteres, estende-se por 83 centímetros de coluna, dividido em duas retrancas, com direito a duas fotos e um infográfico espremido por um anúncio de ¼ de página.
A matéria traz declarações de uma dirigente de ONG, uma professora universitária, duas autoridades municipais, um geólogo, duas aposentadas (é o famoso ‘o povo fala’ que os editores sempre pedem), um empresário, um gerente e uma educadora ambiental.
A legenda da foto principal, em quatro colunas, proclama: ‘Moradores de rua vasculham recipiente de lixo reciclável no Parque do Ibirapuera: para paulistanos, falta divulgação do programa’. A imagem a que se refere o texto-legenda mostra uma pessoa remexendo um dos seis recipientes visíveis na foto. E o que poderia ser apenas um cochilo do redator revela os problemas maiores desse tipo de matéria:
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Por que não ouvir catadores de lixo? Como vivem, onde vivem, a quem vendem os resíduos que recolhem? No que essa atividade mudou suas vidas? (Na segunda retranca, intitulada ‘Participação de catadores ainda é grande’, o gerente de uma empresa recicladora de lixo informa que os catadores ganham entre 300 e 400 reais – serão mensais? –, e só.)**
Por que não desgrudar do telefone e ir aos locais onde as pessoas vivem e trabalham?**
Por que não fazer da cobertura dos assuntos metropolitanos algo capaz de ajudar a melhorar a vida na cidade e aumentar o bem-estar da população?**
Será que ‘catadores autônomos’ estão se aproveitando dos 2.200 contêineres dos Postos de Entrega Voluntária do programa de reciclagem da prefeitura paulistana para, ‘no mole’, retirar dali resíduos previamente selecionados e vendê-los?Perguntas cujas respostas estão nas ruas, no mundo das cidades. Respostas que só podem ser obtidas gastando-se sola de sapatos para chegar aos lugares onde a vida efetivamente acontece.