O filósofo brasileiro e doutor em Educação pela PUC-SP Mário Sérgio Cortella costuma dizer, quando alguém lhe pergunta “Você sabe com quem está falando?”, o seguinte: com o vice-treco do subtroço. Arrancando aplausos e risos de suas plateias, ele demonstra, de forma bem-humorada, o quanto somos insignificantes perante a complexidade da vida na Terra e no universo e propõe atitudes mais humildes e conciliadoras com o planeta e as pessoas. Ao ler a reportagem de capa de Zero Hora no domingo (“Gosto pelo confronto emperra o Rio Grande”, 28/8), lembrei das palavras de Cortella e questionei o porquê de nós, gaúchos, levarmos adiante uma cultura belicosa e revanchista, marcada por controvérsias e falta de consenso. Afinal, onde queremos chegar?
A matéria publicada em Zero Hora recupera assuntos polêmicos, que geraram uma série de desgastes políticos no estado nos últimos anos e atravancaram obras e políticas essenciais para a modernização do Rio Grande do Sul. Temas como privatizações, reforma do cais do porto da capital, construção de um teatro para a orquestra sinfônica, reforma da previdência e calendário rotativo nas escolas transformaram-se em tabus devido à falta de entendimento e acusações de ambas as partes. Zero Hora teve mérito em pensar o assunto. Porém, ao explorar um tema complexo de forma superficial, não avançou no esclarecimento que a pauta merece. O futuro dos gaúchos é preocupante e precisa ser debatido mais incisivamente pela imprensa.
Com pouco mais de 10 milhões de habitantes, o Rio Grande do Sul tem hoje um Produto Interno Bruto (PIB) inferior ao de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Celeiro de políticos marcantes, como Getúlio Vargas, Leonel Brizola e João Goulart, também se destaca pelo bom índice de educação e formação de grandes escritores, exemplos de Mario Quintana e Moacyr Scliar. Por outro lado, o gaúcho tem fama de ser brigão e às vezes parece ter ficado no tempo da Revolução Farroupilha (1835-1845), que pregava o separatismo como o melhor caminho para a paz e a prosperidade.
Criticar contradições, apontar consenso
Essa posição é muitas vezes sustentada subliminarmente pela própria mídia gaúcha, especialmente o grupo RBS, detentor dos veículos mais influentes (RBS TV, jornal Zero Hora e Rádio Gaúcha). Em grandes coberturas nacionais e mundiais, o foco da empresa é dar voz a algum gaúcho que esteja acompanhando o desenrolar da história in loco. Mesmo que o relato seja pobre e sem qualquer fundamento, o que vale é a visão do gaúcho. Por quê? O que o gaúcho tem de especial e diferente?
Nada. O fato de ele estar no cenário da catástrofe ou da guerra, para ilustrar as situações mais recorrentes, não o torna especial, pois nesses casos a humanidade fala mais alto do que qualquer bairrismo. Zero Hora, porém, insiste em “forçar a barra” e levantar a bandeira do gauchismo, fortalecendo o orgulho exacerbado em torno do Rio Grande do Sul em detrimento de uma unidade maior. Essa postura editorial deve ser revista.
Uma empresa importante e de grande inserção cultural e social como a RBS tem que atuar na vanguarda e propor debates que desmitifiquem o imaginário coletivo acerca do gaúcho, um ser pretensamente revolucionário, independente, orgulhoso, superior e acima dos problemas brasileiros. A realidade é outra. O Rio Grande do Sul enfrenta as mesmas dificuldades do país e do mundo e seu povo anseia por liberdade e justiça tanto quanto os outros. E anseia também por informação mais abrangente, aprofundamento e autocrítica.
Se o pensamento e a ideologia hoje dominantes não forem contestados e, pior ainda, tiverem o respaldo da mídia, corremos o risco de o Rio Grande do Sul ser esquecido e se tornar uma província rebelde, onde as coisas não andam para frente. Felizmente, a República Rio-Grandense não passou de um sonho em uma época remota. Somos apenas o vice-treco do sub-troço, uma pequena parte de uma grande unidade, com suas peculiaridades e singularidades, como todos os estados de todos os países. Por que, então, a imprensa gaúcha ainda insiste em nos diferenciar tanto, em vez de criticar as nossas contradições e apontar consenso?
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[Mauricio Tonetto é jornalista do portal de notícias Terra]