De acordo com uma de suas várias definições, mito é ‘a expressão de uma idéia, doutrina ou teoria filosófica sob forma imaginativa, onde a fantasia sugere e simboliza a verdade que se pretende transmitir’. Para Nietzsche, ‘o mito não encontra, de maneira nenhuma, adequada objetividade no discurso’. Isso porque difere da lógica, ou melhor, porque transcende a razão, e a recria. A aura de magia e de mistério que o envolvem, suficientes para suplantar a sempre cansativa, burocrática e injusta realidade, não raro é irresistível. Idealizar heróis salvadores que enfrentem – e de preferência vençam – malfeitores e suas peripécias (ou, porque não dizer, nossas mazelas sociais), é mítico e delicioso. E igualmente perigoso, quando a sedução da imagem afeta a tomada de decisões importantes, como a escolha de um candidato.
O que, senão fração de misticismo, induz parcela da população a crer que figuras expoentes, como atletas ou artistas, resultarão em bons governantes? O que a faz se apegar a detalhes sem qualquer relevância, como aparência, sexo ou cor de pele, ignorando currículos e virtudes reais, a despeito do bom senso, e acima de vantagens pessoais?
Ilusão da divindade fabricada
Há poucas décadas, teóricos apregoavam que os meios de comunicação manipulavam as massas, turba alienada, ao mesmo tempo inocente e perigosa. Atualmente, há equilíbrio na discussão, (quase) dialética. Fala-se sobre consciência crítica, peso de culturas arraigadas e influência de grupos específicos, através da representação dos chamados ‘líderes’ locais. Diverge o cenário, e a utopia também sofre transformação histórica: o protagonista não é mais o super-homem nietzschiano, perfeito deus em si. Pode ser qualquer um. Uma celebridade instantânea, apta pela sua projeção, ou ainda um Robin Hood contemporâneo, injustiçado e, portanto, vingativo.
O anti-herói, aliás, jamais esteve tão em voga. Jorge Amado, que trouxe à luz nobres ladrões, dignas prostitutas e honrados assassinos, cada qual com seu código de ética particular, possivelmente não ficaria surpreso ao constatar que no Rio de Janeiro, por exemplo, são eleitos indivíduos enquanto presos, acusados de crimes graves, ou que têm apoio incondicional do trafico. Ou que em Salvador muitos chorem a queda de tradicional curral coronelista.
Tipificar ações a partir de conceitos genéricos e polêmicos é injusto, já dizia Umberto Eco sobre o próprio titulo de sua obra, no prefácio do livro Apocalípticos e Integrados. Por outro lado, se nos abstemos de apresentar os fatos através de rótulos que bem os definam, por temor da apreciação dos termos escolhidos, corremos o risco de incorrer em análise superficial. Mais do que nunca, hoje funde-se – e confunde-se – o embate entre ‘bem’ e ‘mal’, entre esquerda e direita, entre liberal e conservador. Como recentemente afirmou um aspirante a cargo público (e talvez não sem causa), isso é coisa do passado. É hora de seguir adiante. Seja como for, e sob pena de pecar pelo excesso, faz-se jus à aferição de que a força motriz, o combustível de muitas mentes, ainda é a ilusão da divindade fabricada.
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Diretora teatral e estudante de Jornalismo, Rio de Janeiro, RJ