Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O morto na loja

Na sexta-feira (31/8), na cidade de São Paulo, durante um assalto a um grande supermercado, um vigilante morreu ao tentar defendê-lo. Mais uma vítima da violência urbana, mais um número na estatística. Alguém poderia dizer que morrer faz parte da descrição de função da profissão de vigilante. Como os soldados nas guerras. E que o injusto mesmo é morrer de bala perdida, que quase sempre encontra um inocente no caminho.

Mas o que chama a atenção de quem ainda consegue se manter imune à banalização da morte e às inúmeras notícias da violência trazidas pelos cadernos das editorias de Cidade é a maneira como a empresa tratou o fato: tinha um corpo de um funcionário, sem vida, estendido no chão, entre prateleiras e produtos à espera dos procedimentos legais. A decisão da gerência do megaestabelecimento comercial rejeitou qualquer possibilidade de interromper os negócios até a retirada do corpo, o que acarretaria, talvez, um faturamento menor durante algumas horas. Como a vida não pode parar e o caixa tem que tilintar, uma providencial lona plástica preta ocultou o cadáver. Assim, os negócios na loja prosseguiram como se nada houvesse.

Essa história lembra uma frase de Arthur Miller na peça A morte do caixeiro viajante: ‘Morto, ninguém vale nada’. Ainda mais um empregado do pé da pirâmide, um vigilante pobre. Na foto publicada nos principais jornais via-se a seqüência dos caixas em perspectiva. Neles, os consumidores aparentemente indiferentes ao morto e aparentemente satisfeitos com suas compras. Se fosse um filme, o barulho histérico de caixas registradoras e o zunzum de consumidores empenhados a lotar seus carrinhos seriam a trilha sonora para a imagem do cadáver escondido.

Escondidos para sempre

Mas não é ficção. Sob aquela lona, o morto, os mistérios da morte, os simbolismos, o desconhecido e a dificuldade de se lidar com o assunto. Aquele inconveniente morto, em silêncio, levantava uma última dúvida: o que fazer com os mortos, principalmente quando morrem na linha de produção, no escritório, em casa, nos andares mais altos dos prédios, em lugares assim tão inadequados para quem permanece vivo?

A direção do estabelecimento tratou do caso como quase sempre se age, diante de qualquer coisa que ameace a agenda: toda a atenção deve ser direcionada aos interesses da empresa, aos seus resultados financeiros. Entre os muitos vivos ali presentes, ávidos a consumir, aquele cadáver não poderia ser um empecilho. Cobriu-se o morto com uma lona. Pronto.

As empresas não sabem tratar e comunicar a morte e a doença, principalmente no ambiente do trabalho. O cotidiano laboral não sabe conviver com o desespero, o fato consumado, o sinal do corpo enfraquecido. Elas têm imensa incapacidade de lidar com qualquer aspecto emocional, humano, real, da vida de todo mundo.

Atenção: diante desta inabilidade, todos nós corremos o risco de ser escondidos para sempre, sob alguma lona de plástico.

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Jornalista, professor da ECA-USP e diretor-presidente da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje)