Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O mundo sorri para Obama?

‘O Mundo sorri…’ Esta foi a romântica manchete do Correio Braziliense ao anunciar a eleição de Barack Obama . A Gazeta Mercantil comemorou: ‘A mudança chegou à América’. A Folha de S.Paulo não deixou por menos e vaticinou: ‘ Vitória histórica de Obama afasta conservadores e derrota racismo’. Até a gloriosa Tribuna da Imprensa foi contaminada pelo otimismo hilário: ‘Obama começa a mudar a história dos EUA’. O Globo teve a vantagem de ser menos empolgado: ‘Mundo celebra a nova cara dos EUA’. Só não entendi o ‘celebra’; me considero pertencente ao ‘mundo’ e não celebrei coisa alguma. Surpreendentemente, o Estado de S.Paulo não caiu na ladainha e se ateve à informação útil: ‘Obama começa a escolher equipe para enfrentar a crise’. Mas, a melhor manchete do dia seguinte foi mesmo do Jornal do Brasil, que falou do que interessa para nós, brasileiros, denunciando a eterna fuga de capitais: ‘US$ 4,6 bi saem do país no mês’.

A repercussão

No Congresso Nacional, pronunciamentos apressados e oportunistas de parlamentares, quase sempre do ‘baixo clero’, loucos por holofotes, falando do que não entendem. Até o presidente do Senado, Garibaldi Alves, chegou a tirar uma lasquinha, dizendo que ficou até ‘às 4h30 para acompanhar a eleição’.

Nas páginas internas dos jornalões, dezenas de matérias, charges, colunas e artigos repercutiram e analisaram o fato de forma quase surrealista, não poupando adjetivos apoteóticos. O único que não caiu totalmente na avalanche de sandices, dos que li, foi o senador Sarney que, no seu artigo de sexta-feira (7/11) na Folha, intitulado ‘Um menino do Havaí’, advertiu: ‘Os Estados Unidos não vão mudar. Continuarão com seus problemas, suas contradições, sua crise, suas guerras’. Mas, logo depois, como também é um político e tem suas obrigações como um ex-presidente, acabou rasgando a seda, falando da inteligência do eleito, da importância das instituições democráticas dos EUA e coisa e tal.

Dias depois, com uma ingenuidade de dar dó, o senador Eduardo Suplicy, entrando de gaiato num outro artigo em que Sarney criticava o discurso da vitória de Obama, da tribuna do Senado demonstrou todo seu otimismo. Afirmou que a negritude e o partido do presidente eleito são ‘garantias de que os EUA se preocuparão em ajudar a resolver os problemas da América Latina’. Foi até caridoso com Obama, pois se prontificou ‘em dialogar e dar sugestões’ a respeito do que o eleito pode fazer e colaborar ‘para que, desde o Alasca até a Patagônia, tenhamos, um dia, a implementação de medidas sociais…’ e blablablá. Não se sabe se o senador, com a afirmação, pretende convidar Obama para uma reunião com diretórios do PT ou se está querendo substituir o presidente Lula por Obama no estabelecimento de políticas públicas nacionais, assumindo-se de vez nossa condição de colônia.

A desmistificação

A verdade nesta lambança toda é que não é muito inteligente se afirmar que a ascendência africana de Barack Obama, necessariamente, o fará se preocupar mais com os países pobres do mundo. E é duplamente pouco inteligente pensar que um integrante do Partido Democrata na presidência da maior potência bélica do mundo, necessariamente, seja bom para a paz mundial.

Obama não é uma bela flor isolada que nasceu no estrume da sociedade racista ianque. Ele é o próprio estrume, faz parte do sistema, se embrenhou em suas entranhas, estudou, cresceu e se destacou nele. Sabe de seus limites e, por ser homem preparado, se desenvolveu alimentado justamente pela fertilidade criadora da sujeira da excludente, belicista e racista sociedade norte-americana. Assim como Lula, teve – e tem – que fazer concessões. Mesmo que, por hipótese, na intimidade não concorde com o que predomina ali, sabe que terá que demonstrar ser mais conservador que muitos ‘falcões’, senão, dança. Neste sentido é um verdadeiro Michel Jackson da política. Se não se mutilou para ficar com a pele branca e o nariz afilado, com certeza ‘embranqueceu’ sua visão de mundo e seus métodos. E sabe que terá que provar isso.

Mas não será difícil, pois é do Partido Democrata, que sempre teve presidentes belicosos, como Truman, Kennedy, Johnson, Carter e Clinton. Partido que sempre deu de dez a zero no Republicano quando o assunto é a intervenção em assuntos de outros países, sendo unha e carne com o que o presidente republicano, Dwight D. Eisenhower, chamava criticamente de ‘complexo industrial-militar’.

A História

Senão, vejamos: no século 20, os democratas presidiram cinco dos seis maiores gastos orçamentários com armamentos. Foram duas grandes guerras mundiais (na segunda lançaram a bomba atômica), a guerra da Coréia, a guerra do Vietnã e a recente destruição de um país soberano, a Iugoslávia.

A exceção ficou por conta apenas dos gastos da Guerra Fria durante o governo do republicano Ronald Reagan, na década de 1980. Mas Reagan gastou mais com armas de dissuasão contra a URSS – como o milionário projeto ‘Guerra nas Estrelas’–, não com guerras efetivas. Estas existiram, mas foram infinitamente menos dispendiosas do que as guerras dos democratas. Afinal, a invasão de países ‘gigantes’, como Granada e Panamá, não são assim muito caras, não é mesmo? Mas, o sucessor dele, o democrata Bill Clinton, logo retomaria a linha belicista e imperialista dos democratas. Foi o responsável pela destruição da Iugoslávia, utilizando-se de bombardeio sistemático de civis com armas radioativas sem o aval da ONU. Bombardeou, também com armamento radioativo, populações civis na Somália, na parte turca do Curdistão, assim como no Iraque e no Afeganistão, muito antes do 11 de Setembro.

Depois da destruição da ‘Torres Gêmeas’, já no governo Bush Jr., tanto no Congresso quanto no Senado, republicanos e democratas vêm votando recursos orçamentários suficientes para a ocupação do Afeganistão. Embora a maioria do Partido Democrata no Congresso tenha votado contra a guerra no Iraque (81 a favor e 126 contra), nada foi feito para impedir a aprovação dos sucessivos orçamentos de guerra. Por outro lado, somente um único senador democrata não votou a favor do texto original do Ato Patriótico, a lei de exceção de George W. Bush. A maioria dos senadores democratas também votou por sua renovação, em 2006.

O perigo

Ao contrário do que o otimismo que contagiou a mídia e o senador Suplicy sugere, portanto, Obama pode ser um perigo para a humanidade, não por decisão própria, mas pelo sistema ao qual pertence. Perigo agravado pelo fato de ter origem africana, pois poderá querer provar que tem capacidade, como qualquer falcão branco, não só de manter a tradição belicista democrata, mas de ampliá-la, mostrando-se durão no jogo imperialista da grande potência. É como aquela história da feminista que, lutando para combater o machismo, ao invés de melhorar o mundo com a sensibilidade e a sapiência femininas, acaba masculinizando-se, copiando o que há de pior nos homens.

Obama tem um exemplo histórico entre os presidentes democratas. Harry Truman teve o peso de suceder o gigante Roosevelt, herói da Segunda Guerra. Enfrentou grande desconfiança. Era visto como um liberal sincero, um homem bom, humilde e simplório do povo, quase um pacifista. Para provar ao sistema que era durão, que estava à altura do antecessor, acabou arruinando duas cidades japonesas com a bomba atômica e dando início ao endurecimento da Guerra Fria com a ‘doutrina Truman’. Foi também dele a decisão de criar as bases do que viria a ser a caça às bruxas conhecida como ‘macartismo’.

Truman tinha lançado um ‘Programa de Lealdade’, visando afastar americanos ‘esquerdistas’ das posições influentes. Era o início, nos EUA, de um tipo de expurgo ideológico que até então fora monopólio dos soviéticos. Foi este programa do democrata que permitiu que o senador republicano Joseph McCarthy, por meio do ‘Subcomitê Permanente de Investigações’, fizesse o que fez como verdadeiro inquisidor.

É isto que a História nos diz. Agora, é esperar para ver o que acontece. Que eu esteja errado e que o mundo realmente sorria com Obama. É o desejo de todos.

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Historiador, analista político e assessor de imprensa do senador José Sarney