Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O narciso e a menina de olhos azuis

O narciso acha feio o que não é espelho, já dizia o narciso emérito Caetano Veloso. Jô Soares, ao tentar entrevistar a linda menina de 3 ou 4 anos que se parece com a atriz Ana Paula Arósio, conseguiu, finalmente, mergulhar em direção à sua imagem, depois de tantas tentativas durante a carreira. Fez uma apresentação de como não se deve tratar uma criança. Um modelo de rudeza, impaciência e incapacidade de se relacionar. Uma expressão clara de sua dificuldade de criar vínculos com entrevistados.

Sem paciência, ironizou logo no início que a entrevista seria difícil, pois a linda menina Rafaela não falava (na apresentação dos convidados já demonstrava pânico, o que se notava claramente em seus olhos; o que era muito natural, afinal, estava diante de um auditório imenso com várias pessoas a olhar para ela). Ali, Rafaela captou com inteligência a ironia cortante de Jô e chorou pela primeira vez. Jô não entendeu que havia causado as lágrimas. Para ele, era só um capricho daquela entrevistada qualquer.

E não esperou mais do que um minuto para decretar que a entrevista servia aos seus caprichos humorísticos, independendo das reações da criança. Enfileirou várias e várias ironias pontiagudas e algumas até infantis, mostrando sua verdadeira face (‘Daqui a um tempo, quando você assistir essa entrevista, vai ficar com uma vergonha…’). Um eterno menino tendo uma vergonha em não poder ter sido suficientemente bom para lidar com uma menina que ali o questionava com suas reações naturais.

Só em sua tragédia

O ponto máximo de seu narcisismo se deu quando apresentou o vídeo do comercial tão bem estrelado por Rafaela. Ela chorou copiosamente, claro. Era de se esperar. O narciso, num toque mágico, colocou a imagem dela na tela grande e ela se sentiu completamente invadida. Ela não queria falar, ora. Como estava falando ali? Não podia! Jô havia surrupiado a vontade da menina.

Mas ele não esperava reações ao comercial que não fossem de júbilo. Esperava que ela fosse como ele, sem pudores, sem culpas. Para ele, o outro ali não existia. Soltou mais uma ironia sem embasamento para as gargalhadas de seu público indigente: ‘Essa menina deve odiar a profissão!’. A entrevistada era mais uma vez escada de Jô Soares.

Obviamente, os pais de Rafaela e sua responsabilidade entram na discussão, no sentido em que deixaram que tudo isso acontecesse, sem que nada fizessem. Poderiam nem ter procurado colocá-la no comercial? Poderiam, já que colocaram (e parece que foi uma experiência boa para a menina), não aceitar a entrevista com Jô Soares? E por último: sabendo que a entrevista havia transcorrido da maneira que transcorreu (o programa é gravado à tarde para ser transmitido à noite), poderiam negar a veiculação? Poderiam? Jô e sua produção deixariam?

Mesmo sendo a questão paternal muito importante, o que fica é que a linda menina de olhos azuis deixou o narciso sem saber o que fazer.

Parafraseando o próprio: ‘Daqui a um tempo, Rafaela, você vai se orgulhar dessa entrevista. Você se calou e deixou Narciso só em sua tragédia’.

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Psicólogo, Rio de Janeiro