O que dizer a respeito do olhar da criança sobre a morte numa sociedade onde o próprio adulto refuta a questão e evita buscar um melhor entendimento sobre a finitude humana? Se o medo da morte não é uma questão hereditária, pelo menos é passado, de certa forma velada, de geração a geração na sociedade ocidental. Essa seria uma consideração preliminar no que diz respeito ao tabu da morte e que resulta num comportamento, digamos de ‘auto-proteção’, através dos tempos.
Para discutirmos essa questão, faz-se necessária, antes, uma cronologia sobre o olhar da sociedade sobre a criança, ao logo da história da humanidade. Antes do século 18 e até meados do século 19, na Europa, assim como na América do Norte, a criança não era valorizada e era tida como um pequeno ser sem personalidade. Essa idéia errônea era tão forte que ao morrer, muitas vezes nem tinha um nome ou, por outro lado, seu nome seria dado a outra criança, como se houvesse apenas uma substituição. Por outro lado, na Idade Média, mesmo com as reservas às quais a criança era imposta, ela era tida como um ‘adulto pequeno’ e, portanto, eram pequenas todas as suas atribuições, pensamentos e importância que tinha com seus lugares na família e sociedade.
Aparecer-e-desaparecer
Acontece que a partir da segunda metade do século 19 surge um diferente comportamento tendo à frente as mulheres e o clero, onde as crianças mortas continuavam sendo imaginadas vivas habitando o além, na ‘Terra sem Mal’, onde eram idealizadas como anjos ou pequenos santos, formando aí um imaginário individual e coletivo.
Mas, para contrapor o comportamento que normalmente se tinha sobre a criança nessa mesma época, a burguesia, para a qual a morte da criança era a menos tolerável de todas, passou a perpetuar suas formas idealizadas através de estátuas e representações alegóricas. Chegando à sociedade atual, deparamos com a clara negação da temática morte, com a atenuante de ser uma sociedade capitalista na qual a morte sofre uma mudança radical com tratamento logístico e tecnológico, além da questão da ciência (diferentemente da religião) combater a morte até onde for possível, ao invés de primeiro primar por seu entendimento e aceitá-la como desenvolvimento humano.
Em seu livro A Psicologia da Morte (Editora Universidade de São Paulo, 1983, 448 pp.), Robert Kastenbaum faz a seguinte colocação: ‘A criança procura ativamente experiências de ir-e-vir, aparecer-e-desaparecer. Mais tarde (ainda na infância), ela é capaz de permanecer um pouco desligada do que observa. Percebe a morte e os atributos da morte na situação. Mais tarde ainda (talvez depois da primeira infância), desenvolve os tipos de estruturas cognitivas às quais comumente se aplica o termo concepções.’
Antes de Tanathos chegar
Observando o fantástico mundo lúdico da criança e, em cima do que Kastenbaum diz, podemos perceber que ela faz de certas brincadeiras ‘experimentos’ com a morte, fazendo com que lidem, mesmo nessa fase da vida, com a questão da morte muito melhor do que o adulto que, na fase adulta, substitui essa relação pelo medo. As brincadeiras de aparecer-e-desaparecer (muito comuns na Inglaterra e em outros países europeus), são vistas como pequenos experimentos realizados pelas crianças frente à morte ou frente ao não-ser. O brincar de esconde-esconde (seek and hide), morto-vivo ou mocinho-e-bandido (muito comuns no Brasil) refletem elaborações de concepção de morte, pela criança.
Mas… qual o olhar ou quais os olhares da criança sobre a morte? Seguramente, não é esse que o adulto mostra ou evita ensinar-lhe, ou nem mesmo seu próprio olhar. Para uma melhor discussão, sugiro meu primeiro artigo publicado neste Jornal de Hoje (em 10/11/2004), intitulado ‘Quantas Vezes Morrermos Antes de Tanathos Chegar?’, o qual se encontra no meu blog.
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Psicólogo e professor do Centro de Biociências da UFRN, Natal, RN