Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O oráculo de São Paulo

Na primeira edição de janeiro, o Caderno 2 do Estado de S. Paulo presenteou seus leitores com uma página inteira de previsões feitas por três místicos para este ano. Um babalorixá, uma astróloga e um tarólogo desfiaram seu, digamos, conhecimento, respondendo às mesmas sete perguntas feitas pela coluna de Sônia Racy. O resultado, como não poderia deixar de ser, foi uma torrente de platitudes e inespecificidades, desta vez coroada com a inédita afirmação de que uma lei de Newton será violada este ano!

Apesar de ser um ‘jornalão’, não é a primeira vez que o Estadão publica, sem qualquer constrangimento, uma matéria desse tipo. Em 2005, ‘O futuro segundo Quiroga’ fez matéria de capa no Caderno 2, e todas as críticas que fiz àquela matéria neste Observatório (ver aqui), cinco anos atrás, continuam válidas em seus menores detalhes ao último descalabro jornalístico do Estadão. Talvez eu devesse ter entrado no lucrativo business das previsões: os místicos continuarão a ganhar dinheiro com a credulidade alheia e desta vez receberão entusiástica ajuda de jornais e jornalistas que deveriam zelar pelos princípios básicos da credibilidade das fontes e da checagem de suas afirmações.

O jornal parece que não se importa com a precisão e veracidade das afirmações de suas fontes. Ano após ano, milênio após milênio, os divinadores vêm errando espetacularmente, o que já não surpreende mais ninguém. O que deveria espantar qualquer jornalista com um mínimo de dignidade é que agora esses profissionais do erro estão embolsando credibilidade, fazendo novos clientes e inflacionando seus preços às custas da mídia que pretende se dizer crítica e investigativa.

Violação de leis naturais

Em 2005, tínhamos acabado de passar por um tsunami que não foi previsto por ninguém, mas isso não impediu a repórter de entoar loas à capacidade do astrólogo Quiroga. A matéria deste ano foi publicada no mesmo dia de uma importante tragédia em Angra, que incidentalmente por muito pouco não me custou a vida. Em ambos os casos, ninguém se lembrou de questionar o expertise de peritos que não conseguem apontar os fatos mais marcantes do ano nem quando eles estão bem diante dos seus olhos.

Em 2005, Quiroga desfilou seu saber científico negando a evolução das espécies. Desta vez, o tarólogo Teruo Yamada afirmou que acontecerá ‘uma outra coisa intrigante em algumas regiões do planeta: o dia será muito mais longo do que o normal (presença do Sol). Mais um motivo para as fortes ondas de calor’.

Não é preciso ser grande gênio para perceber que, em cada latitude, a duração do dia depende apenas da velocidade de rotação da Terra e da posição do Sol com relação ao eixo de rotação planeta, determinada indiretamente por nossa posição na órbita de translação. Ironicamente, ambas as coisas são conhecidas e podem ser previstas com enorme precisão – não pelos místicos, claro, mas pela boa e velha ciência. A rotação da Terra, por exemplo, atualmente tem incerteza de cerca de uma parte em cem milhões.

Por isso, embora possa parecer trivial, uma variação na duração do dia de um décimo de segundo, entre um ano e outro, já representaria uma violação da lei da conservação do momento angular, uma das leis físicas fundamentais de nosso universo. Assim, a previsão do eminente tarólogo implicaria nada menos do que um milagre, que é o nome que se dá à violação de leis naturais.

‘Cara eu ganho, coroa você perde’

Mais incrível ainda seria o dia ficar mais longo que no ano anterior apenas em algumas regiões da Terra, enquanto em outras permanece o mesmo! Para isso acontecer, seria preciso mudar até a geometria euclidiana, como pode constatar qualquer pessoa com uma lâmpada e uma maçã na mão. Esse é um dos problemas da suspensão de senso crítico – ou ausência, não sei – necessária para publicar semelhantes patacoadas: chega-se inevitavelmente ao vale-tudo do besteirol. Já que vamos dar crédito aos videntes, por que não passar por cima de qualquer outro resquício de lógica?

Vale a pena apontar em maior detalhe algumas das técnicas utilizadas desde sempre para incrementar a aparência de acertos das previsões. Como toda ilusão de mágica, uma vez conhecido o segredo, o truque se torna elementar. Mas nem por isso deixa de ser eficaz. Então, aqui vai um rápido manual de como acertar sempre, seguido à risca pelos profissionais da área.

Primeiro: seja generoso nas obviedades. ‘Vencer não será fácil’ e ‘a vitória dependerá do empenho de cada jogador’ foram as ‘previsões’ do babalorixá para a Copa. Segundo ele, ‘amor, paz, compreensão e justiça são ideais que a humanidade pode perseguir’. Para o tarólogo, ‘a intenção do nosso presidente é dar voos mais altos e deixar alguém no seu lugar’.

Segundo: nunca diga nada com precisão. Em 2010, a astróloga revelou que ‘o que estiver por baixo será revelado’, ‘haverá pressão sobre o regente do executivo’ e ‘revelações de grandes corrupções [sic], retaliações e revoluções no jogo de forças. E isso se refletirá no aspecto econômico’.

Terceiro: diga que uma coisa pode acontecer. Ou não. Assim você leva o crédito de qualquer jeito. Por exemplo, a astróloga afirmou que ‘Dilma tem a máquina a seu favor’ (vide primeira regra) e ‘seu mapa tem bons aspectos’. A seguir, lembrou que o jogo pode virar. Marina também ‘tem boas chances do ponto de vista astrológico’, mas ‘suas chances são remotas’. Essa é a técnica ‘cara eu ganho, coroa você perde’. Com ela, no ano que vem basta selecionar adequadamente as citações para criar um impressionante registro de ‘acertos’.

A promoção do misticismo

Quarto: faça afirmações infalseáveis – ou seja, que não têm como ser desmentidas. Para o babalorixá, ‘2010 será regido por Oxum e Oxalá, com forte influência de Ibejo e Xangô’ (alguém tem como provar o contrário?). Para a astróloga, existe ‘uma forte tensão no céu’. Para o tarólogo, ‘a economia tomará nova consciência sobre o dinheiro’, o que quer que isso signifique.

Quinto: aposte na continuação de tendências atuais. O mundo nunca muda radicalmente de um ano para outro. ‘As catástrofes naturais estarão relacionadas às águas’ (vide primeira e segunda regras) e ‘Lula continuará em alta’, diz o babalorixá. Para o tarólogo, ‘há muita sujeira dos governantes para vir à tona’ (vide primeira e quarta regras).

Sexto: consiga um jornal de renome para publicar tudo que você disser, independentemente de quão inverossímil ou auto-evidente. Isso piora a imagem dele, mas melhora a sua.

O que leva um jornal destacado a se render a tamanhas atrocidades? Como pode o padrão de jornalismo variar tão abruptamente de um dia para o outro? Ou será de um caderno para o outro? Talvez o clima de relativismo de um caderno de cultura contamine a redação de maneira tão profunda que valores como veracidade e confiabilidade deixem de ser relevantes na determinação da pauta. De qualquer maneira, a publicação de ‘previsões’ que só fazem sentido para leitores de, digamos, determinados coloridos místico-religiosos, dificilmente se encaixa em um caderno de cultura.

Será que o fato de haver leitores interessados é razão suficiente para publicar uma matéria que atenta contra princípios básicos do bom jornalismo? Existirá algum motivo respeitável para promover misticismo sob o título de jornalismo cultural ou tudo não passou de um grande exercício de proselitismo idiossincrático que voou abaixo do radar do jornal, ‘sem querer, querendo’? Se essas previsões são quentes e úteis, deveriam ser utilizadas com mais frequência, e também em outros cadernos. E se não são, por que engambelar o leitor com elas?

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Engenheiro, São Paulo, SP