O que faz uma equipe da TV Globo na porta de uma boate da Zona Sul do Rio às 4 da manhã, senão montar guarda para pegar mais uma imagem que sirva para sua mais nova campanha audiovisual de criminalização?
A Globo, que fala de ‘guerra’ por toda parte – da ‘guerra do tráfico’ à ‘guerra da guarda municipal contra os camelôs’ – e ‘máfia’ para se referir ao transporte alternativo ou às pessoas que vestem camisas de escolas públicas para entrar pela porta da frente dos ônibus, esta Rede Globo agora seleciona, filma e denomina o mais novo grupo que julga merecer os rigores da penalização: os ‘pitboys’, que antes eram apenas o filho, o primo, o irmão ou o sobrinho de alguém que chegava em casa de manhã com o olho roxo ou a boca sangrando. O corretor ortográfico não reconhece, mas é melhor tratar de adicionar este neologismo, assim como todo o ‘pitglossário’: ‘pitfamília’, ‘pitdelegado’ e, mais recentemente, ‘pitgirl’.
Novos ‘pits’ certamente surgirão, e serão adicionados à lista de inimigos públicos por ordem e graça de reportagens mal contadas da Rede Globo ou do jornal O Globo. Não serão selecionados entre os pobres, pois o prefixo surgido no caderno ‘Rio Fanzine’ do Globo tem a função exatamente de contribuir para a mistificação da igualdade perante a lei entre consumidores ativos e consumidores falhos – ainda que os horrores do sistema penal contemporâneo, máquina de encarceramento oficial e execução extra-oficial dos pobres, da qual a mídia é agência simbólica e executiva, possa um dia fugir ao controle do projeto político-econômico que é o outro lado da mesma história.
Ameaça à imprensa
A equipe da TV Globo filmava um estudante de 22 anos na porta da boate Baronneti, em Ipanema, atraída pelos novos valores jornalísticos de ‘sangue da boca’ e ‘expulsão por seguranças’. No meio deste furo de reportagem, eis que tiraram a sorte grande: uma mulher saiu da boate sangrando. Novamente sentindo o cheiro, o cinegrafista aproximou-se para registrar em imagens de mais uma confusão, uma briga, um infortúnio individual, um drama particular, momentâneo. Uma amiga da moça indignou-se, tentou impedir a filmagem. A reportagem diz que o iluminador foi agredido com socos e arranhões. Foi o bastante. O título da matéria? ‘Pitgirls em noite de fúria’ (matéria que abriu o caderno Rio do jornal O Globo de sábado).
O que justifica dar destaque de capa, tom de ridicularização, publicar fotos constrangedoras e reivindicar os rigores da lei para três mulheres transtornadas, possivelmente embriagadas, invadidas em seus conflitos particulares por uma equipe de televisão guiada por critérios jornalísticos no mínimo esquisitos.
De qualquer forma, não é primeira vez que um dos lados registra, fotografa, escreve e publica seu próprio manifesto contra o ‘outro lado’, as três mulheres, que acabaram a noite entrando numa delegacia por causa daquele cara ali que, a despeito de tudo, continuava filmando na porta da DP, com o reforço do outro cara ali, do mesmo grupo empresarial, fotografando. Os dois continuavam lá, seis horas depois, para registrar a saída das ‘pitgirls’ que, por causa de sua revolta contra a xeretagem, mas revolta, dormiram no xadrez. Que as moças tenham dito que foram agredidas ao tentar impedir a filmagem não vem ao caso. Não temos essas imagens…
Haverá ainda quem diga que os ‘pits’ em geral, depois dessa, ameaçam a liberdade de imprensa.
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Jornalista