Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O paradoxo de castelos e mansões vs. favelas e barracos

Platão, Aristóteles, Karl Marx, Montesquieu, Gramsci, Paulo Freire, Darcy Ribeiro e muitos outros pensadores são unânimes em afirmar uma proposição consensual básica: a desigualdade social é um câncer, uma chaga que corrói, destrói e desequilibra qualquer sociedade, qualquer nação. O Brasil é, sem dúvida alguma, um destes paradoxos. Somos uma Belíndia, um misto de Bélgica e Índia, transitamos entre o luxo e o lixo, entre nobreza e a pobreza, entre a opulência e a carência, mansões, favelas e moradores de rua. Tudo isso porque ainda carregamos a pecha de termos uma das maiores concentrações de renda do mundo; ainda termos um dos piores salários do mundo; termos as maiores disparidades sociais do mundo. Para ter acesso à internet, o trabalhador brasileiro gasta 7,9% em média do seu mísero salário, enquanto nos Estados Unidos o trabalhador gasta apenas 0,4% em média, do salário, para ter acesso a este serviço.


Ainda temos uma das maiores taxas de analfabetismo do mundo; ainda temos uma alta taxa de mortalidade infantil. Temos um déficit habitacional da ordem de oito milhões de famílias sem teto. E um grande número de famílias mora em residências precárias que, comumente, acabam por desabar sobre seus habitantes. As taxas de juros no Brasil são análogas ao agiotismo; bancos como o Itaú chegam a praticar uma taxa de juros de 60% ao ano. Em suma: o Brasil é uma tragédia. O Brasil é mais que uma Belíndia, somos uma Fináfrica, um misto de Finlândia e África. O que mais tem nos chocado são algumas manchetes veiculadas na mídia versando sobre castelos e mansões pertencentes a alguns componentes do poder público.


Uma discussão mais centrada e sistemática


O deputado Edmar Moreira, do DEM de Minas Gerais, sem o mínimo de escrúpulo exibe um castelo, uma fortaleza. Na verdade, aquilo é uma afronta ao povo, aos milhões não têm nem o que comer, muito menos uma moradia digna para morar. No mínimo, aquilo que vimos em Minas é uma imoralidade. E o mais grave é que o deboche com o povo não pára por aí. Um diretor do Senado também é possuidor de uma mansão no Distrito Federal sem declarar à Receita Federal. Depois do castelo, o novo escândalo de Brasília é uma mansão do diretor-geral do Senado, Agaciel Maia. O imóvel vale cinco milhões de reais e não está na declaração de bens do funcionário.


Imóveis caros e luxuosos se tornaram o símbolo da corrupção em Brasília e vieram à tona na mídia, neste ano de 2009. Primeiro foi o castelo do deputado Edmar Moreira, que ele não declarou à Receita. Dias depois foi a vez de vir à tona a mansão do diretor-geral do senado, Agaciel Maia. E, o boom do momento é o escândalo envolvendo o vereador de São Paulo Ushitaro Kamia, também do DEM. Este não declarou no ano passado uma casa que vem sendo erguida no estilo de um palácio imperial em condomínio de luxo na Serra da Cantareira, na capital. Estima-se que a mansão está avaliada em seis milhões de reais e, na sua declaração á justiça eleitoral, exigida para ser candidato nas eleições de 2008, Kamia entregou uma declaração somente no valor de 198 mil reais.


A mídia até tem mostrado essas afrontas, mas não tem sido feito um debate sobre o tema. Alguns noticiários televisivos chegam a fazer alguns paralelos entre as mansões dos homens públicos e a situação do povo que tem suas casas de má qualidade. Mas limitam-se a fazer comentários emotivos e sensacionalistas. Podemos frisar como exemplo deste tipo de jornalismo o telejornal Brasil Urgente, apresentado por José Luiz Datena, na Band. Pelo menos ele faz algumas provocações, cita, mesmo que sem muita propriedade conceitual, a incoerência instalada na sociedade civil e na sociedade política brasileira. Mas falta uma discussão mais centrada e sistemática sobre o tema. A televisão até mostra a tragédia de um povo morrendo sob escombros de casebres desabados sobre famílias. Mas o que não há é uma filogênese do fenômeno. Quando a mídia fala sobre temas relativos à violência sofrida pelo povo, ela o faz de uma forma isolada, descontextualizada.


Vendo o monstro se criar


Os episódios de corrupção envolvendo somente as mansões dos homens públicos não focam uma série de outras ações corruptas; a imprensa foca tão somente o fato individual. O que seria viável era fazer uma discussão mais profícua sobre causas. A filosofia tem um princípio básico segundo o qual nada surge e/ou emerge do nada, do acaso. Nada é causa de si mesmo. Há sempre uma gênese, uma origem das coisas; uma causa que causa os fenômenos. No caso particular da corrupção no Brasil, não é algo natural, sempre houve uma estrutura jurídico-política que, reforçada pelo modo de produção capitalista, a forjou e sustentou. E, diga-se de passagem, o modo de produção capitalista encontrou no Brasil, um solo fértil para produzir e reproduzir corrupção e desigualdade social.


A nossa elite, por sua vez, sempre nadou de braçadas, certos da impunidade, certos de que as leis no nosso país, até hoje, só têm servido para punir pobres e minorias excluídas. O músico Herbert Viana ilustrou de uma forma eloqüente a nossa realidade, na música Selvagem, quando canta:




‘A polícia apresenta suas armas
Escudos transparentes, cassetetes
Capacetes reluzentes
E a determinação de manter tudo
Em seu lugar


O governo apresenta suas armas
Discurso reticente, novidade inconsistente
E a liberdade cai por terra
Aos pés de um filme de Godard


A cidade apresenta suas armas
Meninos nos sinais, mendigos pelos cantos
E o espanto está nos olhos de quem vê
O grande monstro a se criar


Os negros apresentam suas armas
As costas marcadas, as mãos calejadas
E a esperteza que só tem quem tá
Cansado de apanhar’.


As nossas cidades foram formadas e, pasmem!, ainda estão se formando a partir destes arquétipos; são mansões da elite governante, os mendigos pelas ruas, meninos nos sinais e o espanto em nossos olhos vendo, impotentes, o grande monstro a se criar. Essa situação em si já é amoral e, mais amoral ainda, é saber que a desigualdade, além de tudo, de toda a sua gravidade, aqui é fruto de corrupção. Para ser mais claro, é fruto de roubo da coisa pública.

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Filósofo e educador