Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O peso do conteúdo nas mudanças gráficas dos jornais

Nos últimos anos, a indústria gráfica tem se desenvolvido de maneira surpreendente. Com a ajuda da tecnologia, profissionais do design têm à disposição o ferramental necessário para dar vazão às idéias, tornando muito mais fácil testar e visualizar propostas gráficas, a custo zero, na tela do computador – ou com custos baixíssimos, em versões impressas, antes de propor um novo layout ou design.

Para quem começou no jornalismo no tempo das “pretinhas”, e viu como era montada no paste-up uma página de jornal, essas novas tecnologias significam nas redações um salto da era jurássica – ou talvez, medieval – para a época dos Jetsons.

Pois a tecnologia tem permitido também que os grandes jornais diários passem por reformulações de layout com uma freqüência espantosa. Projetos que duravam décadas agora, em poucos anos, tornam-se ultrapassados. O último dos grandes a inovar em seu layout foi a Folha de S.Paulo, ao criar uma nova linguagem visual em seus cadernos, em maio de 2006. Pouco tempo antes, o Jornal do Brasil havia radicalizado no formato, “encolhendo” o tamanho de suas páginas. Há poucos dias, a rede de jornais do interior Bom Dia anunciou que vai experimentar o formato tablóide em Jundiaí (SP).

Mas a pergunta que fica é se essas mudanças são apenas visuais ou incluem também uma alteração substancial no conteúdo desses veículos.

Ousadia editorial

A Folha é um dos melhores exemplos, na mídia nacional, de preocupação constante com o aprimoramento do conteúdo. Desde 1981, quando lançou o “Projeto Folha”, o jornal vem definindo diversas novas regras de conduta e de estilo para seus profissionais. Apesar das muitas restrições que se possa fazer ao Projeto Folha, principalmente à maneira como foi implementado, e ao seu uso “marqueteiro”, há que se admitir que as definições e conceitos do projeto ajudam a explicar a transformação da Folha, nesses 25 anos, num dos maiores jornais do país.

O projeto inicial da Folha, de 1981, trazia claras influências do jornalismo americano, como bem analisou Carlos Eduardo Lins da Silva em O adiantado da hora. Lembrava ele que “a ideologia do jornalismo americano é de que o repórter de notícias deve reportar, não interpretar”. Lembrava ainda que as bases fundamentais do estilo americano de jornalismo eram notícias escritas no modo indicativo, em ordem direta, na fórmula da pirâmide invertida, respondendo às seis perguntas fundamentais (quem, o que, quando, onde, como e por quê) nos dois primeiros parágrafos. [Silva, Carlos Eduardo Lins da. O adiantado da hora: a influência do jornalismo norte-americano sobre o brasileiro. São Paulo, Summus]

Minha geração aprendeu a ler jornais graças à Folha. Muitos, inclusive, começaram a trabalhar lá (resultado da alta rotatividade que havia) ou em algum momento do início da carreira passaram por lá. Na primeira metade dos anos 1980, o JB era um ícone da qualidade editorial. O jornal carioca era o único que conseguia, numa matéria do dia-a-dia, publicar um texto diferenciado, com um enfoque exclusivo, singular. Enfim, o JB era a prova de que nem todos os jornais precisavam ser iguais em suas coberturas.

A diferença se dava na abordagem editorial. Era como se os repórteres do JB de então – e de certa forma era assim mesmo – fossem mais experientes, não ficassem correndo atrás das autoridades e das fontes como um bando de abelhas em torno do mel, com faziam os coleguinhas recém-formados (entre os quais eu me incluía). Era como se os repórteres do JB observassem mais e relatassem com mais estilo e propriedade os “climas” de algumas entrevistas.

Em relação a projeto gráfico, o Jornal da Tarde, de São Paulo, era a referência. O uso das fotos, a ousadia dos títulos, aliados a reportagens investigativas, fizeram da minha uma geração de apreciadores do velho JT – a “Edição de Esportes”, publicada às segundas-feiras foi outro ícone.

O Projeto Folha

Neste contexto, a Folha lançou seu primeiro projeto editorial, com uma proposta bem menos sofisticada, fosse gráfica ou editorialmente: buscava principalmente a padronização e a precisão. Liberdades estilísticas como as que tinham os jornalistas do JB ou do JT estavam fora de cogitação. “O objetivo de um jornal como a Folha é, antes de mais nada, oferecer três coisas ao seu público leitor: informação correta, interpretação competente sobre essa informação e pluralidade de opiniões sobre os fatos”, dizia o texto do projeto de 1981, batizado “A Folha e alguns passos que é preciso dar”.

O texto é rico em detalhes, definindo cada um desses preceitos – informação correta (“a descrição de tudo aquilo capaz de afetar a vida e os interesses que se acredita serem os dos leitores”), interpretações competentes (“comentários e análises redigidos por profissionais que, conforme os critérios adotados pelo jornal, aliam o domínio sobre uma determinada área do conhecimento ou da atividade humana ao domínio sobre a técnica de escrever”) e pluralidade de opiniões (“textos, artigos, depoimentos, entrevistas etc. que, tomadas em seu conjunto, funcionem como uma reprodução mais ou menos fiel da forma pela qual as opiniões existem e se distribuem no interior da sociedade”). O documento completa a definição do que deveria ser a linha editorial a ser seguida: “A ossatura de um jornal, o que lhe sustenta o corpo dando-lhe consistência e forma, são as reportagens, os textos noticiosos e as fotos de boa qualidade. Editoriais e artigos apenas complementam essa ossatura, que segue sendo a essência do jornal”.

Vale ressaltar um ponto que sempre diferenciou a Folha de seu principal concorrente, O Estado de S.Paulo. Ao afirmar que editoriais e artigos “apenas” complementam a ossatura do jornal, a Folha distancia-se de uma seara onde o concorrente sempre fez questão de fincar o pé. “No caso do jornal O Estado de S. Paulo, o que o caracteriza e deu força para o jornal durante toda a sua existência foi o fato dele assumir sistematicamente posições quando há conflitos de idéias, de concepções, de políticas, de seja o que for”, definiu Ruy Mesquita, diretor do Estadão, em entrevista ao Observatório da Imprensa. “A grande força do jornal sempre foi à página 3 e mais do que nunca agora, quando o comprador do jornal, o assinante do jornal, já sabe o que ele vai ler no jornal do dia seguinte quando ele compra ou quando ele recebe o jornal em sua casa” [Ruy Mesquita, entrevista ao programa de TV do Observatório da Imprensa (12/04/2005)].

A implementação um tanto traumática do Projeto Folha explica-se em parte pela necessidade de a nova geração da família Frias impor-se perante uma redação velha e cheia de vícios. A obrigação do cumprimento das novas regras e a mensuração diária dos erros cometidos – segundo os preceitos do projeto e do Manual da Redação – foram iniciativas inéditas na imprensa brasileira. Por outro lado, chocaram os jornalistas num primeiro momento, principalmente os da velha-guarda. Mas fato é que resultaram, no médio prazo, numa aculturação dos jornalistas em relação a um rigor maior com a checagem e apuração de informações. O famoso “Erramos” é fruto desse radicalismo inicial.

Em 1984, o engajamento da Folha na campanha das Diretas-Já antecipou um reconhecimento do público ao novo projeto editorial, que normalmente demoraria alguns anos para se efetivar. As Diretas-Já inspiraram a segunda versão do projeto, que reafirmava e aprimorava os conceitos do primeiro: um jornalismo pluralista, apartidário e moderno, acrescentando uma postura crítica. “Por definição, qualquer fato jornalístico é objeto da crítica jornalística”, dizia o texto, completando: “Crítica que o repórter realiza quando compara fatos, estabelece analogias e veicula diferentes versões sobre um mesmo fato”.

O texto de 1984 deixava transparecer a eloqüência dos executivos e editores do jornal com a repercussão conseguida em decorrência do apoio às Diretas-Já (ou talvez pudéssemos chamar de arrogância):

“A Folha é o meio de comunicação menos conservador de toda a grande imprensa brasileira. É o que mais tem-se desenvolvido nestes anos. É o mais sensível aos movimentos da opinião pública e é também o mais ágil. Politicamente é o mais arrojado. É com certeza o que encontra maior repercussão entre os jovens. Foi o que primeiro compreendeu as possibilidades da abertura política e o que mais se beneficiou com ela, beneficiando a democratização. É o jornal pelo que a maioria dos intelectuais optou. É o mais discutido nas escolas de comunicação e nos debates sobre a imprensa brasileira. Está no rumo certo, graças à lucidez e à competência dos que dirigem a empresa e graças ao trabalho jornalístico que conseguimos desenvolver até aqui.”

Calcanhar-de-Aquiles

Esse exagero contido no texto do Projeto Folha de 1984 suscitou outras críticas ao jornal nos anos seguintes. O jornalista e professor José Arbex Jr., ao analisar a forma como a Folha elaborava seus editoriais, avaliava que o processo de produção do texto opinativo do jornal “revela a maneira pela qual a empresa jornalística se insere no mercado e em relação ao Estado, bem como a maneira pela qual a empresa articula-se internamente no sentido de responder às questões colocadas pela conjuntura política e econômica do país”. Mas considerava, “no caso específico (do editorial) da Folha, que não tem feição própria, ideologicamente definida, mas que optou por uma linha muito mais suscetível às oscilações da opinião pública como estratégia de mercado” [artigo de José Arbex (in Melo, J.Marques, Gêneros Jornalísticos na Folha de S.Paulo)].

No ano seguinte, o sugestivo nome “Novos Rumos” foi dado à terceira versão do projeto editorial da Folha. O texto trazia como principais características uma melhor definição do tipo de crítica a ser feita pelo jornal – a crítica substantiva (“que revela fatos documentados e incontestáveis, mostrando a conexão entre eles sempre que essa conexão também estiver comprovada”), contra tudo e contra todos – aliada à prestação de serviço e a um aumento no grau de didatismo do material publicado. Neste último caso, o projeto defendia que os jornalistas deveriam partir sempre do pressuposto de que o leitor não está familiarizado com o assunto e pode nunca ter lido sobre ele antes.

“Tudo deve ser explicado, esclarecido e detalhado – de forma concisa e exata, numa linguagem tanto coloquial e direta quanto possível. (…) A rigor, tudo o que puder ser dito sob a forma de quadro, mapa, gráfico ou tabela não deve ser dito sob a forma de texto.”

Essa terceira versão do projeto propunha-se a uma ousadia que talvez até hoje não tenha sido alcançada:

“Cada texto publicado na Folha deve ser claro e explicativo o bastante para ser lido com utilidade pelo leigo, sofisticado o bastante para ser lido pelo especialista e enriquecido sempre por uma dimensão de serviço que o fará lido por ambos”.

Em 1988, uma nova versão justificava a segmentação do jornal em cadernos e suplementos, “de modo a organizar psicologicamente a leitura e atrair novas frações do leitorado”. Admitia que as decisões jornalísticas – tanto na pauta quanto na edição – tinham um quê de arbitrário. Mas defendia que era possível se transformar um fato “leve”, circunstancial, num grande assunto, numa nova área de interesse, que a reprodução “televisiva” dos acontecimentos de um dia não revelava.

“Mas para isso é necessário, antes de tudo, ter fatos concretos, solidamente apurados, ricos de detalhe, capazes por si próprios, e não por malabarismos de edição, de despertar o interesse do leitor.”

Ao longo dos anos, a Folha tentou aprimorar seu estilo de produção jornalística, sem abrir mão dos princípios definidos em sua primeira versão. Em 1997, a última versão, e ainda válida, do projeto pregava uma transição de “um texto estritamente informativo, tolhido por normas pouco flexíveis, para um outro padrão textual que admita um componente de análise e certa liberdade estilística”. Seria uma evolução natural, que aproximaria a Folha, no fim do século, de “concorrentes” da época de lançamento do projeto, o JB e o JT dos anos 1980.

Mas o texto de 1997 antecipava-se ao calcanhar-de-Aquiles do projeto, desde seu nascedouro: o grande número de erros com que os leitores se deparavam cotidianamente nas páginas do jornal. Dizia o texto:

“A um texto noticioso mais flexível deve corresponder um domínio superior do idioma, bem como redobrada vigilância quanto à verificação prévia das informações, à precisão e inteireza dos relatos, à sustentação técnica das análises e à isenção necessária para assegurar o acesso do leitor aos diferentes pontos de vista suscitados pelos fatos”.

Além da estética

Passados 25 anos desde a primeira versão do Projeto Folha, leitores mais críticos do jornal e os estudiosos do mercado de mídia podem argumentar que as intenções explicitadas nesses documentos do jornal pouca semelhança têm com a realidade do jornalismo praticado pela Folha.

Por outro lado, é incontestável que, nesses 25 anos, a Folha se tornou um dos maiores jornais do Brasil, ganhou credibilidade e incorporou entre seus leitores uma significativa parcela de formadores de opinião. Talvez não tenha conseguido dar a seu conteúdo, especialmente a seus editoriais, a personalidade que seu principal concorrente tem. O Estado de S.Paulo, mesmo que considerado reacionário – ou no mínimo conservador – por muitos, nunca poderia ser acusado de neutro diante de assuntos polêmicos. Fato é, também, que a Folha jamais conseguirá tirar da concorrência o reconhecimento histórico por ter combatido tão direta e corajosamente a censura dos anos de chumbo.

A esperança é que a recente mudança da Folha não seja apenas cosmética, como sugeria o comercial de TV, em que os principais articulistas apareciam se “preparando” para o novo jornal. O mercado merece mais do que isso. E espera mais que isso. Por enquanto, o indicador disponível é o “Manual de Filosofia e Formatos”, distribuído à Redação em maio de 2006. Não se trata de uma nova edição do projeto, mas traz um detalhamento das mudanças visuais implementadas e as razões por que foram feitas. O trabalho foi desenvolvido pela mesma equipe que cuidou da reforma e tem óbvias pretensões didáticas. Já na introdução, assinada por Melchiades Filho e Massimo Gentile, mantém certa prepotência em justificar a necessidade da mudança gráfica:

“A Folha ostenta um forte capital político e institucional, graças ao projeto editorial inovador e bem-sucedido que disseminou no jornalismo brasileiro conceitos como independência, pluralismo e apartidarismo. Mas outro forte atributo do produto é o fato de ser reconhecido como amigável, clean, divertido, bem diagramado, fácil de consultar. Essa particularidade não escapou aos integrantes da comissão interna que por mais de um ano debateu novos rumos e propôs as bases de um novo projeto. Teríamos de manter uma tradição de design arrojado, levá-la a um novo extremo, com o objetivo de atender um leitor sobrecarregado, mas ainda interessado no ato de se informar” [texto de Melchiades Filho e Massimo Gentile, que abre o “Manual de Filosofia e Formatos”, distribuído aos jornalistas da Folha junto ao lançamento do projeto gráfico 2006 do jornal, em 21/05/2006].

Independentemente de críticas ou ressalvas que se façam ao Projeto Folha, resta a todos os estudiosos das ciências da comunicação a esperança de que as mudanças propostas em 2006 pelo jornal não sejam apenas estéticas. Para o bem do jornalismo brasileiro.

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Jornalista e professor da Faculdade Cásper Líbero (São Paulo, SP)