Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O peso dos atores do segmento popular

Uma das dimensões mais emblemáticas das eleições presidenciais brasileiras de 2006 é, sem dúvida, o profundo antagonismo entre a cobertura da grande mídia contrária ao candidato-presidente Lula – até o tucano Fernando Henrique Cardoso declarou ao diário argentino La Nación (6/10/2006) que “nos últimos dias os meios de comunicação foram bastante duros com Lula” [“Para Cardoso ‘Lula es um caudillo peronista más que chavista’”, em espanhol] – e a posição favorável à reeleição de Lula, expressa insistentemente pela maioria dos eleitores através de sondagens de opinião e do primeiro turno da eleição. Em 1º de outubro, Lula teve 46.661.741 votos, perfazendo 48,6% do total de votos válidos.

O jornalista e pesquisador Venício Artur de Lima tem chamado atenção para o paradoxo que coloca em questão o poder da mídia na sociedade brasileira. As explicações do autor para tal fenômeno são diversas, mas no centro de sua análise está a emergência de mediações complexas oriundas da sociedade civil em expansão e consolidação no país. Assim, a mídia teria seu poder relativizado por esta mediação.

O jornalista Franklin Martins, em entrevista à revista Caros Amigos, afirmou que um fenômeno novo e “importantíssimo” aflorou na vida política brasileira. O padrão de formação da opinião pública no Brasil estaria em xeque com o alargamento e consolidação da “classe C” (pessoas com ganhos de dois a cinco salários mínimos). Conforme estatísticas recentes, por volta de 6 milhões de brasileiros foram incorporados a esta “classe”. Para Martins, “a partir de agora é a classe C que vai formar opinião”.

Assistencialismo e desprezo

A imprensa não foi capaz de observar esta novidade. Pelo contrário, arrogante, buscou sempre desqualificar a persistência dessa opinião majoritária e dissonante. Para ela trata-se tão-somente de uma adesão ilegítima dos pobres ao poder em decorrência da atuação do governo, considerada pela grande mídia como assistencialista. Nesta perspectiva, são sempre citados programas como Bolsa Família, criado no governo FHC, e que hoje atinge cerca de 11 milhões de famílias.

Em síntese: a adesão não decorreria de relações de representação e interesses genuínos, inclusive porque a população não teria autonomia nem capacidade para traduzi-los em opiniões.

A desqualificação torna-se ainda mais contundente porque vem sempre associada a uma outra exigência. A grande imprensa, com seu discurso moralizante, cobra a adesão de todos a esta cruzada. Assim, a postura da maioria da população é mais uma vez criticada, agora por seu desleixo com a questão ética. Assistencialismo e desprezo pela ética seriam os signos “explicativos” da rebeldia da população frente à imprensa. Não resta dúvida, que a atitude da grande mídia transpira elitismo.

Políticas de governo

Uma análise, mesmo rápida, dos resultados do governo Lula não sustenta que a expressão assistencialismo seja a melhor para avaliar a totalidade de suas políticas. A evolução e a comparação de alguns indicadores podem ser elucidativos.

O índice de desigualdade social passou de 0,573 (governos FHC) para 0,559 (governo Lula); a participação dos mais pobres da renda nacional subiu de 14,4% para 15,2%; o desemprego caiu de 12,2% para 9,6%; foram criados no governo Lula por volta de 6 milhões de empregos, dos quais quase 4 milhões com carteira assinada contra 700 mil no governo FHC; o valor do salário mínimo subiu de 55 dólares para 152 dólares; seu poder de compra passou de 1,3 para 2,2 cestas básicas e a inflação caiu de 12,53% no final do governo FHC para 2,8% atuais. Os dados, ainda que não exaustivos, apontam para políticas mais estruturais.

Com base nas hipóteses de Venício Lima e de Franklin Martins pode-se propor que a convergência entre organização da sociedade civil e fortalecimento de novos segmentos de classe torne possível uma atitude crítica de formação de opinião, com graus de autonomia frente aos tradicionais formuladores da opinião pública – inclusive a mídia e a classe média. Isto permitiria uma avaliação das políticas de governo e uma adesão ao presidente-candidato com base neste julgamento.

Enfim, em lugar de aderir à opinião, moralizante e contraposta a Lula, construída pela mídia e pelas classes médias, esses segmentos populares, com base em seus interesses e na sua avaliação das políticas de governo, assumiram o lugar de sujeitos políticos e acabaram politizando as eleições contra todas as intenções em contrário das elites.

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Professor da Universidade Federal da Bahia, da Faculdade de Comunicação e do Programa Multidisciplinar de Cultura e Sociedade. coordenador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura e pesquisador do CNPq