Volto ao assunto Época–Observatório-Opus Dei após ler os comentários de outros leitores. Cheguei mesmo a me espantar com o fato de que apenas um, salvo engano, citou o Código Da Vinci. A questão é muito mais séria e ampla, e vai além do que pode ser apenas religioso ou apenas ideológico.
Como todos estamos cansados de saber, e Alberto Dines também teve que tocar na mesma tecla, nossa Constituição nos assegura um Estado laico, sem religião oficial. Contudo, na prática, as coisas não são bem assim. Uma coisa é ter uma religião majoritária em um país, como a católica, que, aliás, passou por interessantíssimos momentos de sincretismo com os cultos afro-brasileiros: anos atrás, um professor de Medicina italiano, no Brasil por causa de um congresso, estava fascinado com a idéia de conhecer essa mistura religiosa na prática. Pena que veio a São Paulo e não à Bahia… Mesmo assim, me pediu uma série de livros (a maioria só existia em português) e os enviei à Universidade de Pavia, uma das mais antigas da Europa, onde o prestigiado neurologista e culto cidadão vivia, que foram para ele traduzidas pelo pessoal de lá.
Católico de carteirinha
E mesmo a denominação católica, embora estável frente às igrejas protestantes, passa por alguns apuros com os ‘televangélicos’. E assim podemos continuar a falar dos que professam o judaísmo, o islamismo, o budismo, seitas outras e mesmo o ateísmo. Um dos princípios básicos do Estado de Direito é a liberdade de culto, e por isso se entende que o cidadão pode praticar a religião que quiser, sem influência do Estado e vice-versa, sem a crítica das demais crenças e mesmo sem acreditar em nada.
Mas a religião acaba se imiscuindo na política: a separação Igreja-Estado, um dos legados da Revolução Francesa, acabou por deixar, até os dias de hoje, muita coisa suspensa no ar. Dessa maneira, não há dúvidas de que a Itália, a França e a Argentina, por exemplo, tenham uma maioria católica. Em vários países isso existe, e seus textos constitucionais separam uma coisa da outra; na prática, contudo, a religião faz uso de lobbies para atingir seus interesses: isso pode ser feito de maneira oficial, como em Israel, aonde há os partidos religiosos, muitos ortodoxos e pequenos, mas que servem como fiel na balança entre os grandes de lá, ou como aqui, onde em teoria somos laicos e livres, mas como ficou evidente no caso das células-tronco, a igreja, via CNBB, pressionou fortemente o Executivo e o Legislativo, que chegou em primeira votação, antes de ir para o Senado, a proibir tais pesquisas no Brasil, mas após várias intervenções o projeto foi aprovado e sancionado.
Outro exemplo é o do aborto de anencéfalos ou de seu uso para fins de transplante: essa discussão nem tem mais cabimento científico, dado o fato de que todos anencéfalos morrem, pela ausência óbvia do cérebro; mas a questão, que estava para ser decidida favoravelmente no STF, obteve parecer contrário do então procurador-geral da República, que confessou ser católico de carteirinha mas alegou que isso não influiu em seu parecer, pois ouviu a comunidade científica. E que cientistas ele ouviu? Basta o interessado ter acesso a seu parecer nos sites apropriados da PGR, do STF e da comunidade jurídica para ver que ouviu oito pessoas ligadas à academia, todas católicas fervorosas, duas das quais justamente ligadas à Opus Dei…
Liberdades, o pilar
Na política strictu sensu ocorre o mesmo: direita e esquerda. Uns acusam os outros de jacobinos. Houve o terror na Revolução Francesa, mas também com os bolcheviques e os nazistas. Cada lado reivindica sua razão e quer o seu Termidor. Como dizia um nobre francês ao visitar a Rússia do século 19, percebia-se que ‘haveria uma revolta dos barbudos contra os barbeados’. Cá no Brasil tivemos uma certa seqüência disso, com Brizola chamando Lula de ‘sapo barbudo’, certo? Mas ninguém dá importância ao que tais políticas de fato fizeram. O liberalismo extremado não funciona a não ser em nações muito ricas e com a cultura do povo sendo favorável, como nos Estados Unidos. E o centralismo político e econômico suprime a liberdade, em todas as suas formas.
Estará a verdade no meio termo, no Estado de Bem-Estar Social? Muitos vão argumentar com os ditos de Marx e Lênin, de que é preciso passar pela fase burguesa de uma revolução até atingir a ditadura do proletariado. E muita gente acredita que é isso mesmo que o PT está fazendo, agradando a burguesia financeira para tomar de assalto nosso Palácio de Inverno ou o Kremlin brazucas. Mas, na verdade, parece ser o gosto pelo poder mesmo, a famosa picada da mosca azul. Aliás, nunca é demais ver as semelhanças do pensamento do bolchevismo inicial leninista com o nazismo idem hitlerista.
Dessa forma, garantir a liberdade de credo, culto e expressão são pilares de qualquer sistema que se julgue digno de merecer a alcunha de democracia. Já em certos países islâmicos, ou simplesmente nunca ninguém viu uma urna, já que o muçulmano é submisso a Alá por princípio básico da religião e não tem livre arbítrio (maktub), ou são protocolares, como no Irã.
Teria voltado?
A igreja católica é altamente complexa, possui suas várias ordens e o centralismo imperial no papa, por definição infalível. Quando uma organização até escreve a que veio, como no caso da Opus Dei e as obras de D. Escriba de Barraquer, e se torna prelazia pessoal do papa conservador, parece não haver importância alguma. As denúncias contra as práticas da ordem são antigas, e só recentemente no Brasil é que se transformaram em livros, motivo da reportagem de Época e dos comentários mais que pertinentes de Alberto Dines, por causa da influência da Universidade de Navarra nos meios de comunicação. E há leitores que perguntam qual a formação e a moral de Dines… Certamente esses o desejam nas fogueiras do Santo Ofício.
A Opus Dei age em várias frentes. Um médico, espanhol e não coincidentemente de Navarra, está há vários anos em São Paulo, sendo simpático e divulgando aos poucos suas idéias. Mas tenta a todo o custo levar especialmente jovens recém-saídos da faculdade para a ordem. Explica que lá tudo é de graça, até dormitório tem, belíssima biblioteca e assim por diante. Um dia, ele começou a me tentar para freqüentar a ordem. Recusei, educadamente, dizendo: ‘Mas doutor, eu sou judeu!’. Sua resposta: ‘E daí, isso não tem importância!’
Desde essa época fico me perguntando se, caso eu tivesse ido, teria voltado.
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Médico, mestre em Neurologia pela Unifesp, ex-conselheiro do CRM de São Paulo