Que coisa mais chocante: uma senhora de 68 anos (idade para ser avó ou talvez bisavó) ir à televisão, justo na hora em que a família se reúne para desfrutar os ensinamentos da novela global, e dizer, no português claro das pessoas do povo, como resolveu sua sexualidade.
Era mesmo para dar o escândalo que deu, a ponto de obrigar o autor da novela a pedir desculpas ao público [ver ‘Depoimento espontâneo cria polêmica em novela‘].
A imprensa tinha mesmo que registrar. Mas poderia ir além da nudez da Ana Paula Arósio ou do depoimento da vovó que ainda sabe como ter prazer. Era só perguntar como teria sido a reação do público se, ao invés de uma representante da terceira idade, pobre e negra, o depoimento tivesse sido dado por uma jovem branca e bonita, que usasse outros termos para dizer a mesma coisa. Será que as espectadoras iam ficar igualmente chocadas ou diriam que esse tipo de depoimento é educativo?
Por que o escândalo?
Uma mulher (considerada) velha dizer que tem prazer e não precisa de homem para isso rende até matéria especial da revista Veja, que classificou o depoimento de ‘grotesco’. O que foi grotesco: o tema abordado, as palavras usadas ou o fato de a autora do depoimento ser uma mulher mais velha e, ainda por cima, do povo?
Disfarçar, dizendo que a nudez é que causou o escândalo, é mais uma hipocrisia das tantas cometidas pela imprensa quando tem que falar de assuntos-tabu como o preconceito com as mulheres, especialmente as mulheres negras e idosas.
Falar de sexo (e mostrar) é o que a TV mais faz hoje em dia, sem escolher horário, sem se preocupar se são crianças, adultos ou idosos que a estão assistindo. Sexo e orgasmo são parte da receita dos filmes que passam até nas antigamente inocentes sessões da tarde. Sexo é tema de filme, novela, programas femininos e de anúncios diversos. Tem coisa mais grotesca do que usar e abusar das bundas femininas para vender cerveja? Mas ninguém reclama. Seria moralismo.
Então, se não somos moralistas, se no século 21 tudo é permitido, por que o escândalo? Se não foi coisa arranjada pela própria emissora, tem algo de muito podre nessa Dinamarca tropical. Se os espectadores e leitores se chocam com palavras, como se explica o sucesso de revistas femininas que usam e abusam da sexualidade, ensinando as leitoras de classe média – as mesmas que assistem à novela das oito – a ter mais prazer, a apimentar o casamento, a se satisfazer sem a participação de ninguém?
Dois pesos
A imprensa deveria ter separado o dito escândalo em dois tópicos: a nudez e o depoimento. Porque nudez não é novidade da TV. Tanto assim que até a evangélica Rede Record se rendeu aos encantos do ibope e despiu o mocinho da novela Bicho do Mato, como registra Cristina Padiglione:
‘Homem pelado na tela da Record? Eram só os glúteos, calma, um banho de rio básico. Mas eis que os princípios do marketing, ou apelo à audiência, a essa altura da cobiça da rede de Edir Macedo, superam os princípios evangélicos’ (O Estado de S.Paulo, 20/07/2006).
Se a novidade são os depoimentos, que agora – segundo Veja – vão passar pelo controle de qualidade da direção da Globo –, é de se perguntar porque ninguém ficou chocado com as palavras da jovem que falou sobre preconceito, em outro capítulo da novela. Se a senhora do orgasmo chocou pelas palavras, a jovem do preconceito deveria ter chocado pelo conteúdo do que disse. Mas ninguém registrou – nem os leitores, nem a imprensa – que ainda hoje os negros, quando andam nas ruas, são motivo de piada se usam o cabelo afro ao natural, sem o trato dos finos salões. Nem a mãe entrevistada por Veja, que elogia os depoimentos que falam de temas polêmicos, considerou preconceito de cor um tema a discutir com os filhos.
Para agradar ao público que se declarou chocado com a novela, os jornais publicaram o pedido de desculpas do autor e Veja fez uma grande matéria discutindo os limites da TV, terminando com conselhos para os pais preocupados. Os mesmos pais que garantiram um extraordinário ibope ao outro grande assunto da semana: o julgamento dos jovens que mataram o casal Richthofen. Um caso que poderia ser o enredo da próxima novela das oito, pois tem tudo para ser um mega-sucesso: a jovem loira e bonitinha, o namorado drogado e um crime violento.
Os jornais gastaram páginas e páginas reproduzindo as falas das testemunhas, dos acusados e de todos os envolvidos na história. E por quê? Porque é um crime de classe média em que os envolvidos poderiam ser os vizinhos de bairro ou os sócios do mesmo clube que os leitores do jornal. Mas como ninguém usa expressões ‘grotescas’ para falar do assunto, não há escândalo, há apenas a necessidade de informar o leitor. Informar com um exagero de detalhes que não se viu, por exemplo, num outro julgamento noticiado na semana: o dos assassinos de dois namorados, mortos em Embu-Guaçu, enquanto acampavam. Como os assassinos eram bandidos comuns, o julgamento foi noticiado com a sobriedade que se espera da imprensa nesses casos.
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Jornalista