Na França, setembro marca o fim das férias de verão e o reinício das atividades políticas. No marasmo do mês de agosto, quando Paris fica entregue aos turistas – já que até os ministros e o presidente da República deixam a capital em busca do far niente –, a imprensa multiplica a criatividade por mil para tratar de um panorama político desacelerado, com o poder funcionando no piloto automático.
Mas isto era antes da era Sarkozy. As férias norte-americanas do presidente renderam fotos, fatos e muitos comentários em torno de uma suposta ‘angina branca’ da primeira-dama, que a impediu de ir almoçar com a família Bush. Mas o mais inusitado foi a reintrodução da foto retocada no jornalismo – procedimento usual sob Stalin e Saddam Hussein – feita pelo semanário Paris Match e a descoberta por um jornalista do L’Express, que denunciou a fraude.
Mesmo ausente da vida política francesa, o trepidante presidente deu à imprensa assunto para uma cobertura diária inédita num país em que férias presidenciais eram mantidas sob sigilo e jamais acompanhadas pelos jornalistas. Sarkozy conseguiu, até nas férias, transformar-se num tema tão predominante na imprensa que às vezes dá a impressão de que seu dia tem muito mais que 24 horas.
Ausências enigmáticas
As férias do presidente foram seguidas de perto pela imprensa. Nos últimos dez anos, Chirac costumava sumir por alguns dias durante o verão e os jornais se limitavam a dizer em que país ele se encontrava. Suas férias eram quase um segredo de Estado. O presidente que instaurou a era do marketing político no país foi seguido por enviados especiais aos EUA e posou nadando, fazendo cooper, passeando de lancha, remando ou sendo recebido pela família Bush. A foto de Sarkozy remando levantou a polêmica sobre o que é informação no fotojornalismo e a manipulação da informação numa foto retocada.
Do gesto brusco e irritado do presidente, diante do assédio dos fotógrafos ao custo do aluguel da casa milionária paga por amigos idem, passando pelo encontro com a família Bush au grand complet, as férias de Nicolas e Cécilia foram seguidas como um seriado pela imprensa francesa. Houve suspense e lances misteriosos como a ausência de Cécilia no almoço dos Bush. Os chargistas se deliciaram e produziram pérolas de sutileza e causticidade, como as de Plantu, o desenhista-vedette do Monde.
Le Monde e o Libération aproveitaram a história do bolo de Cécilia nos Bush para publicar reportagens sobre as ausências enigmáticas da ‘primeira-dama’ francesa, que, aliás, detesta esse epíteto. Ela faltou à votação do segundo turno da eleição presidencial (seu marido foi eleito sem seu voto), voltou para a França antes de Sarkozy, no meio do primeiro encontro do G-8 de que ele participava, na Alemanha, inebriado pelo direito de freqüentar a corte dos grandes deste mundo e, por fim, deixou a família Bush perplexa ao vê-lo chegar sozinho.
Em toda parte, todo o tempo
Sobretudo porque o convite para um almoço informal na costa Leste foi dirigido por Laura Bush diretamente a Cécilia. Isso tudo parece um tanto people, isto é, digno de revistas de celebridades. E é. Os analistas políticos têm comentado o quanto o novo casal presidencial preza o mundo das celebridades e não tem medo de freqüentá-las, mesmo que a companhia de artistas e milionários choque a quem preferia o estilo sóbrio dos predecessores. Entusiasmado, Nicolas disse a amigos rich and famous, durante o jantar que comemorou a vitória no chiquérrimo Fouquet’s : ‘Vocês gostaram de Jackie Kennedy? Pois vão adorar Cecília’. O que fica subentendido é que se ela é uma nova Jackie, ele é um novo Kennedy.
E se depender da escritora Yasmina Reza, a construção da persona do presidente começa em grande estilo. A rentrée literária este ano foi marcada pelo lançamento do perfil de Sarkozy chamado L’aube le soir ou la nuit (Editora Flammarion, 186 páginas, 18 euros), escrito pela romancista e dramaturga durante um ano em que acompanhou o candidato em campanha. Yasmina Reza é autora, entre outras, das peças Arte, representada no mundo inteiro, e de Conversations après un enterrement, além de livros de contos.
O perfil de Sarkozy, escrito durante a campanha presidencial é o acontecimento do ano. Lançado no dia 24 de agosto, o livro foi comentado e elogiado em toda a imprensa. Nicolas Sarkozy conseguiu o milagre de se imiscuir até na rentrée literária, marcando mais um gol no seu projeto de estar em toda parte, todo o tempo.
Energia fora do comum
A escritora, filha de pai judeu e mãe húngara, resolveu entender o que movia o candidato, filho de mãe judia e pai húngaro, e como ele construía pouco a pouco o personagem que o habita – e que continua fascinando os franceses depois dos 100 primeiros dias de governo, como mostra o índice recorde de aprovação (69%) publicado pelo Journal du Dimanche de 26 de agosto.
Yasmina Reza procurou-o um ano antes da eleição e lhe apresentou o projeto de escrever um perfil literário, seguindo-o durante um ano de campanha. Sarkozy respondeu: ‘Não tenho a impressão de correr um grande risco.’ E incorporou-a aos comícios, reuniões e viagens na França e ao estrangeiro. Passaram a se tratar por tu, deixando o formal vous de lado. Apesar de estar lado a lado dos jornalistas embedded, Yasmina nunca se misturou com eles nem freqüentou as salas de imprensa. Seu approach era essencialmente outro.
A escritora diz que descobriu no candidato uma pressa que o faz olhar sempre em frente, e nunca para o passado. Foi essa relação de angústia em relação ao tempo que passa – e que deve ser vencido permanentemente – que Yasmina Reza tomou como leitmotiv do personagem. ‘Ele faz parte desses homens dotados de uma saúde de ferro, extremamente voluntarista, com um potencial excepcional e uma energia vital fora do comum, que teve de fazer escolhas, se diversificar, já que a política ocupou um espaço muito grande em sua vida, como um tumor dentro de um ser’, disse a autora em entrevista exclusiva à revista Le Nouvel Obervateur desta semana, que publica extratos do livro.
Protuberância exagerada
A entrevista de Yasmina Reza à revista é parte da estratégia de lançamento do perfil, que apesar de ter saído com uma tiragem inicial de 100 mil exemplares não traz nenhuma revelação bombástica. Entrevistada por Jérôme Garcin, a autora contou que o candidato se impressionou quando, em Londres, ao saírem de um encontro com Tony Blair, viu a imprensa inglesa interessada em falar com a autora da peça Arte e fotografá-la. Ele constatou que quem iria escrever seu perfil era uma autora consagrada fora das fronteiras de seu país. E, no fundo, deve ter-se felicitado por seu feeling.
O livro é mais uma jogada de mestre de Sarkozy, que domina como nenhum político francês a arte da comunicação e do marketing político.
Se depender de amigos do presidente, como Arnaud Lagardère, o estado de graça, que já dura 100 dias, continuará. A revista Paris Match (do grupo Lagardère) achou por bem retocar uma foto em que Sarkozy aparece remando numa canoa, dentro do Lago Wolfeboro, na costa Leste dos Estados Unidos. Revelada pela revista L’Express, a elegância photoshop do presidente foi justificada por Paris Match: ‘A posição da canoa exagerava a protuberância (os ‘pneus’, que os franceses chamam poeticamente poignées d’amour) abaixo da cintura’.
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Jornalista