A passagem dos 20 anos da Constituição de 1988, em outubro passado, recolocou na agenda normas relativas à regulação das comunicações cujo potencial democratizador, mesmo sem serem regulamentadas, contraria interesses tradicionais dominantes no setor e, portanto, continua objeto de múltiplas interpretações e até mesmo de propostas radicalmente opostas ao seu sentido original. Uma dessas normas é certamente o ‘princípio da complementaridade’, introduzido no capítulo da Comunicação Social pelas mãos competentes do saudoso ex-senador Artur da Távola (1936-2008), à época deputado constituinte [ver, neste Observatório, ‘Um lutador pela comunicação democrática‘, ‘Acabou o `sempre mais!´‘ e ‘A liberdade contra a lógica binária‘].
Em respeito à memória daqueles que trabalharam na elaboração do texto constitucional, retomo o debate na tentativa de recolocá-lo dentro de sua trajetória histórica. Neste texto, recorro, sobretudo, a depoimentos do próprio constituinte Artur da Távola.
O Artigo 223 reza:
‘Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, publico e estatal’.
Uma leitura do texto indica, sem margem a dúvida, que o princípio deve ser aplicado pelo Poder Executivo como critério para a outorga e renovação de concessões, permissões e autorizações de radiodifusão. Está implícito que existem três sistemas de radiodifusão, isto é, os sistemas privado, público e estatal.
Existe a distinção entre os sistemas em outros setores?
Vamos começar pelos sistemas. Aqueles que combatem o princípio argumentam que a distinção entre privado, público e estatal ‘não ocorre com nenhum dos outros direitos tratados sob o chapéu Da Ordem Social, como a saúde, a educação e a previdência social’ [cf. ‘Os papéis dos Estado e do mercado‘].
Em reunião da antiga Subcomissão de Rádio e Televisão da Comissão de Educação do Senado Federal, realizada em 9 de setembro de 1999, após ouvir longa exposição de especialista que não havia feito qualquer referência sobre o princípio da complementaridade, o então senador Artur da Távola pediu a palavra para fazer ‘uma pequena recordação e uma confissão’. Disse ele:
‘Durante a Constituinte, toda a disputa se estabeleceu em torno do Conselho (de Comunicação Social). (…) Eu era o Relator da matéria e considerava que o mais importante era algo que significasse a democratização na outorga dos canais. (…) E eu defendia a tese de haver um equilíbrio na concessão. Parecia-me que, havendo um equilíbrio na concessão, se alcançaria o pressuposto da democratização nos meios de informação. Então, criei ali a figura da complementaridade do sistema. Eu era Relator e criei esta figura, que a autorização a concessão, a permissão para o serviço de radiodifusão sonora de sons e imagens observasse o princípio de uma complementaridade dos sistemas privado, público e estatal (…).
Eu tinha na mente, não era, digamos assim, assunto do conhecimento específico dos demais Constituintes, porque não estavam trabalhando diretamente sobre a matéria, eu tinha em mente, como eu era Relator também do capítulo de educação e de cultura, de que lá no capítulo de educação criamos, para o conceito de escola pública, algo que escapasse ao exclusivo conceito de escola estatal como definição de escola pública.
Havia naquela época uma pressão muito grande nas empresas privadas na questão da educação e tínhamos o problema político de tirar da mesma luta as (escolas) privadas qualificadas e as (escolas) privadas comerciais de educação. Em outras palavras, a igreja, algumas escolas evangélicas importantes, acabavam ficando no mesmo bolo dos tubarões do ensino porque a questão da educação privada é que as unificava. E criamos no capítulo da educação essa idéia da instituição pública que não é necessariamente estatal, desde que sem fins lucrativos, desde que comunitária, desde que filantrópica. Isso na época foi combatido, não foi aceito nem pela esquerda e nem pela direita (…) a idéia de um público que represente não apenas o Estado, mas o que houver de possivelmente organizado na chamada sociedade. Eu tinha em mente que havíamos criado essa figura da entidade pública ao lado das entidades estatal e privada e pareceu-me importante criá-la também dentro da comunicação.’ (grifos nossos).
Como se vê, a distinção entre os sistemas público, privado e estatal, havia se originado nos debates sobre o capítulo da educação. De fato, um pesquisador sério verá que o Artigo 213 da Seção I (Educação), do Capítulo ‘Da Educação, Da Cultura e Do Desporto’, diz:
‘Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que:
I – comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação;
II – assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder público, no caso de encerramento de suas atividades’.
Não é verdade, portanto, que a distinção entre privado, público e estatal só ocorra na radiodifusão. Ela começou, originalmente, nos sistemas educacionais.
O estatal é público?
Aqueles que combatem a distinção entre os sistemas estatal e público de radiodifusão afirmam que ‘não existe diferença entre estatal e público. O que é estatal é público, pois o Estado é, ou deve ser, público’ [Marcos Dantas, professor da PUC-RJ, cf. ‘Os papéis dos Estado e do mercado‘]. Neste sentido, sim, é verdade. O estatal deve ser público. Mas a questão é outra.
No que se refere á radiodifusão, a distinção entre os sistemas estatal e público já aparece em documento entregue ao presidente eleito Tancredo Neves pelo CEC, Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, em dezembro de 1984. O documento diz:
‘Sem prescindir tanto do estado quanto da iniciativa privada, este documento privilegia a criação e a consolidação de um sistema público de radiodifusão. Entendemos como sistema público aquele que sendo financiado tanto por contribuições diretas do público, como pelo estado e/ou pela iniciativa privada tem, todavia, sua programação sob o controle de segmentos organizados da sociedade civil’ (cf. CEC, ‘A Transição Política e a Democratização da Comunicação Social‘; Brasília, 1985; p. 7).
O constituinte Artur da Távola defendia ‘a idéia de um (sistema) público que represente não apenas o Estado, mas o que houver de possivelmente organizado na chamada sociedade’. Não se sabe se ele tinha ou não conhecimento do documento preparado pelo CEC para Tancredo Neves.
De qualquer maneira o debate sobre o ‘público não estatal’ não se limita à educação e/ou à radiodifusão. Ele ganhou corpo e constituiu-se em forte tradição no Brasil – e no exterior – com a experiência dos ‘orçamentos participativos’ municipais, posterior à Constituinte de 88. Há uma ampla bibliografia sobre o assunto que tem sido ignorada pelos que combatem a distinção no campo da radiodifusão. Nos limites deste artigo, cito apenas uma referência: Por uma nova esfera pública – A experiência do orçamento participativo; organizado por Nilton B. Fisher e Jaqueline Moll; Vozes, 2000.
E o que significa complementaridade?
A ‘confusão conceitual’ é também acusada de ser responsável pelo isolamento do sistema privado em relação aos sistemas estatal e público. E o princípio da complementaridade tem sido até mesmo evocado para eximir o sistema privado de radiodifusão de suas responsabilidades de ‘serviço público’ que simplesmente não pode existir sem a autorização e a fiscalização do Estado e da sociedade [ver ‘Novo conceito jurídico para sistema privado de TV‘].
É importante que fique claro qual era o conceito de complementaridade com o qual trabalhava o próprio constituinte que o introduziu no texto constitucional. Na Ata da mesma reunião da Subcomissão de Rádio e Televisão, diz Artur da Távola:
‘(…) Infelizmente, até hoje, nenhum governo observou esse principio. Temos visto poucas concessões, mas as havidas até agora são quase todas na área privada ainda, num espectro de mais de 90% de casos de privatização por entidades privadas que não cumprem em absoluto nenhuma das normas da Constituição e as outras regulamentares. (…) A privatização que acontece há mais de 40 anos nunca teve uma agência reguladora, (como a) que surgiu com as novas privatizações (das telecomunicações). Por que não uma a agência reguladora na área da comunicação? E ainda existe o estratagema de impedir, por uma sutileza de que radiodifusão não é telecomunicação, a possibilidade de alguma agência regular o processo. Isso acontece porque os governos não têm força diante da mídia (privada). Os governos dependem dela e a ela se entregam. A mídia sabe disso. Não há força. E, no Parlamento, ou há grupos interessados no domínio da mídia – há até uma bancada de proprietários da mídia que votam matéria de interesse próprio quando deveriam estar impedidos pelo texto da própria Constituição – ou há políticos de grande porte, que detêm redes em seus Estados, obtidas ao tempo do governo autoritário, com as quais organizaram, de modo muito profundo, a sua penetração e a sua indestrutibilidade no panorama local, por dominarem completamente os meios de comunicação. E dominando os meios de comunicação, evidentemente, têm garantidas reeleições, presença crescente no Estado, etc. (…)
A Lei Maior, ao criar a complementaridade dos sistemas, deu o instrumento que o Poder Executivo não utiliza. Ele não tem feito outorgas do ponto de vista da complementaridade do sistema. Que universidades, instituições da sociedade e organizações ligadas a profissionais do setor têm ganho? Nada.’
Não pode haver dúvida, portanto, que ao exigir a observância do princípio da complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal para outorga e renovação das concessões de radiodifusão, a complementaridade pretendia corrigir o inquestionável desequilíbrio histórico existente entre esses sistemas, com a óbvia hegemonia do sistema privado.
Falar para os Anais
Ao encerrar suas observações na Subcomissão de Rádio e Televisão da Comissão de Educação do Senado Federal, naquele 9 de setembro de 1999, o ex-senador Artur da Távola disse:
‘Temos, pelo menos, a alegria de falar para os Anais. Os Anais nunca serão consultados, no entanto, dão-nos a sensação de que aquilo que fazemos não se perde, não se destrói’.
Felizmente, nesse ponto o saudoso senador estava errado. Os Anais estão sendo consultados e o que foi dito não se perdeu e não se destruiu. Ainda bem.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)