Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O que a imprensa tem a ver com isso?

O retrato de algumas figuras carimbadas na reunião da Fiesp que discutiu a tese da redução de garantias trabalhistas poderia ter inspirado a imprensa a pensatas transversais a respeito da crise financeira que assombra o mundo. Pelo menos no que se refere ao Brasil, a imagem de algumas daquelas personalidades deveria remeter a um ponto crucial nas manifestações da crise entre nós. Mais especificamente, à questão dos desvios constatados na gestão de algumas grandes empresas – que produziram as vulnerabilidades que agora geram os pedidos de ajuda ao governo.

Mas a imprensa brasileira não tem a prática das pensatas transversais. Os temas são tratados linearmente, dentro da especialidade de cada jornalista, e o leitor é conduzido, com o perdão da imagem, ‘feito mula com antolhos’. Raramente se observa a interposição de elementos subjacentes ao tema central, que ajudariam o cidadão a entender os fatos em seus variados contextos.

A reportagem que ocupa a manchete da Gazeta Mercantil na edição do último fim de semana (‘Crise força empresas a reinventar função do RI‘), por constituir um exemplo raro, serve como ilustração. Nesse texto, a jornalista constata que a crise tem forçado empresas de capital aberto a reinventar as funções de seus profissionais encarregados das relações com investidores. Em lugar de simplesmente tratar de divulgar balanços e atrair investidores, os chamados RIs agora funcionam como analistas de conjuntura, relações-públicas e canal alternativo de comunicação, tentando convencer o mercado de que suas empresas têm condições de superar as turbulências. Ponto para a Gazeta, por ilustrar a necessidade que algumas empresas sentem de compartilhar mais informações para consolidar sua reputação.

Essa questão vai acabar revolvendo o tema do compliance – o nível de compartilhamento de informação estratégica com o qual cada empresa deve se comprometer – mas isso é tema para outra conversa. Apenas convém, aqui, lembrar que muitos analistas que se colocaram contra a ampliação da transparência das empresas, há dois anos, estão na lista dos que se omitiram ou se enganaram diante dos sinais de crise.

Emprego ameaçado

O ponto de partida para uma análise transversal do desempenho das empresas no Brasil, de capital aberto ou não, e que tem a ver com o debate sobre ajuda governamental, é a questão da governança. O tema foi abordado abertamente, no início de dezembro, durante o 9º Congresso de Governança Corporativa, realizado em São Paulo pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), em 8 e 9 de dezembro passado. Ali se disse claramente que o compartilhamento de informações com os diversos públicos de interesse das empresas precisa ser aprimorado.

Segundo o administrador de empresas Fernando Eliezer Figueiredo, consultor na área de desenvolvimento sustentável, esse deveria ser o ponto de partida para uma discussão sobre o combate aos efeitos da crise. ‘As empresas precisam repensar suas estratégias de relacionamento, desmontar as caixas-pretas e buscar a confiança dos investidores, clientes, fornecedores, órgãos públicos, agentes de crédito, sempre com base na transparência’, observa.

E o que a imprensa tem a ver com isso? Tem a ver que, enquanto os jornalistas continuarem paparicando empresários e executivos, como se eles fossem intocáveis, as empresas vão continuar fazendo o que querem e depois correm para o colo do governo, sem se sentir na obrigação de oferecer contrapartidas, como, por exemplo, garantir o nível de emprego para evitar os efeitos sociais da crise provocada ou agravada por elas.

Ou a imprensa já esqueceu o punhado de bilhões que algumas grandes corporações brasileiras queimaram no jogo da especulação? Comenta-se no mercado, por exemplo, que, para perder os 700 milhões de reais anunciados oficialmente, a Sadia deve ter rolado perto de 5 bilhões de reais em operações financeiras de alto risco. Os jornalistas engolem a versão de que o conselho de administração dessa e os de outras empresas igualmente prejudicadas por operações semelhantes desconheciam tais operações. Isso é uma ofensa à inteligência do piloto de copiadora xerox que tem seu emprego ameaçado porque determinados indivíduos tentaram um cruzeiro de falcão com asas de galinha.

Inteligência estratégica

Seria demais, claro, imaginar que um jornal ou uma revista dependente de anúncios saísse por aí a dizer todas as verdades sobre os efeitos da crise no Brasil. Acabariam por concluir que, de fato, sem os desatinos de certas figuras carimbadas que posam em retrato compungido na Fiesp, as turbulências internacionais poderiam, sim, se manifestar por aqui na forma de marolas. Seriam suficientes para obrigar a recolher as cadeiras da praia e animar os surfistas.

O sistema financeiro, reformado há dez anos pelo Proer do governo Fernando Henrique, é bastante sólido apesar de extremamente concentrado; o governo tem caixa para os socorros necessários e o mercado interno ainda tem os sinais vitais preservados.

Quando se fala da conveniência de se apresentar os temas complexos como esse a partir de uma abordagem transversal, trata-se exatamente de honrar a inteligência do leitor. Mostrar-lhe que há vilões entre as vítimas e levar em conta que ninguém mais vai engolir esse negócio de reduzir o salário do trabalhador para o acionista não ter que vender o veleiro. Afinal, ele vai mesmo naufragar se os efeitos da crise não forem combatidos com inteligência estratégica e principalmente com transparência.

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Jornalista