Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O que é a notícia?

À primeira vista, a notícia não poderia ser mais óbvia: de 2 a 5 de agosto, especialistas em Educação de todo o Brasil reuniram-se no Recife, na Fundação Joaquim Nabuco, para avaliar o programa nacional do livro didático. Era e foi o Encontro Nacional do Programa do Livro Didático. Simples, não? Como fato, claro e limpo como água boa. Não bastasse um encontro nacional vir para um estado que um dia, dolorosamente distante, foi o Leão do Norte, não bastasse um resistente por que me ufano da minha terra, esse acontecimento seria notícia no Recife pelos temas e discussões agendados.

Entre as muitas mesas e deliberações do Encontro havia uma pauta rica, digna de matérias e reportagens, que variava de trabalhos como ‘A diversidade cultural e a regionalização dos conteúdos dos livros didáticos’, a ‘Compra de obras de ficção e de não-ficção pelo governo’, ou essa coisinha boba, desprezível, de o Fundo Nacional de Desenvolvimento Educacional, o gerador desse Encontro, ser o maior comprador de livros do mundo. Simples, não?

Simples, pero no mucho

Simples, sim, até a abreviatura. De Goiás ao Pará, passando pelos sites da Câmara Brasileira do Livro e do MEC, o Encontro foi notícia. No entanto, como a insinuar que nem todo fenômeno é muito simples, em Pernambuco, acreditem, o silêncio foi quase absoluto. Somente o Pernambuco.com, com incursão breve como um raio em uma notinha no Diário de Pernambuco se dignou a mencionar o Encontro. Por que isto?, perguntaram-se os especialistas em Educação reunidos no Recife. Numa tentativa de superar o mal-estar, a Fundação Joaquim Nabuco encaminhou então um release aos órgãos de imprensa de Pernambuco na quinta-feira (4/8).

– Para quê? – Para nada, como no poema de Ascenso Ferreira. O silêncio se fez ainda mais cerrado. Desta vez, nada, nem notinha, em nenhum dos jornais na sexta-feira (5/8). Então o presidente da Fundação Joaquim Nabuco, o ex, notem bem essa condição de ex, que remete a um poder que se foi, o ex-ministro da Justiça Fernando Lyra ligou para as redações dos jornais do Recife, com educação e boas maneiras, como deve ser toda relação e diálogo de uma autoridade com a imprensa. E recebeu como sentença, onde não cabe apelação ou recurso, recurso jurídico, vale dizer, porque veio de editores e de uma instância inexorável, a resposta:

– O Encontro Nacional do Livro Didático do Programa do Livro Didático, do Fundo Nacional de Desenvolvimento Educacional, com seus Programas e Especialistas do Extremo Norte ao Chuí, com seus Temas e Declarações e conseqüências sobre a vida escolar de milhões no Brasil, ainda que no Recife, para a imprensa do Recife, não é notícia.

Mas o que é a notícia?

Perguntavam-se na sexta-feira os técnicos e sociólogos da Fundação Joaquim Nabuco. Para exprimir um sentimento e palavra que viraram moda e notícia, ‘perplexos’, perplexos, perguntavam-se. Sim, o que é a notícia? Não adianta ir aos dicionários, porque diante da velocidade do mundo, e da leviandade ligeira do Brasil, a definição de notícia dos dicionários já nasce mumificada. Até porque para ser um relato, como está no Aurélio, um relato de interesse público, atual, não é fácil determinar. Nem mesmo o que é ‘de interesse’, o que é ‘atual’, e o que é ‘público’, este principalmente, porque o público se tornou cada vez mais privado. Esqueçamos, portanto, o dicionário, porque ele não é recente, porque ele próprio não é um news em nenhuma revista, a não ser como marketing de lançamento.

Mas esquecer não é superar, desde os mais antigos freudianos, à margem e dentro do mercado. Especialistas diferentes, incluídos aí os professores de comunicação, e até mesmo os velhos jornalistas, com o devido perdão pela ausência do novo, do novíssimo jornalista, que sempre é indício, na experiência humana, de qualidade pouca, diferentes especialistas divergem.

‘Notícia é a expressão de um fato novo, que desperta interesse do público a que o jornal se destina’, dizem uns. Mas o que é o fato novo? É o acontecido há pouquíssimos instantes, ou o inusitado, o jamais visto? Neste sentido, um homem que matasse um tigre a dentadas enquanto escrevo estas linhas seria uma extraordinária notícia, pelos dois motivos. No entanto, este incomum nem sempre é possível. Sabemos nós que o mundo se move nem sempre por linhas absolutamente novas, novíssimas, nunca pressentidas ou anunciadas, bomba, bomba, como desejam os editores, mas por linhas às vezes em círculos, em voltas progressivas de espiral, como de resto é a própria história humana.

Outros há que definem a notícia como tudo aquilo que possa interessar a alguém (sexo, sangue, esporte, pois não?), que notícia é a informação transformada em mercadoria. A estes deveríamos dizer que o mercado não precisaria depravar a informação a tanto. Uma coisa é o mercado servir-se da notícia para veicular os seus produtos, e outra, um pouquinho distinta, é fazer da própria notícia mercadoria. Por esse último caminho chegaríamos fácil, fácil ao maravilhoso filme kodak dos atentados de 11 de setembro, ou ao anúncio comercial do genocídio da bomba de Hiroxima. Não desçamos a tanto. O sensacionalismo, o lugar que cede a informação à sensação, o real fantasiado para divertir ou idiotamente espantar já fez suas matanças.

Não há muito, o geneticista Genaro Paiva lembrou de personagens oportunistas, que se dizem cientistas, e que se aproveitam para espalhar uma boa fofoca científica, como a de que o produto da mistura genética entre uma célula humana e uma célula vegetal resultaria em algum monstro do tipo metade homem, metade raiz. E, concluía o geneticista, ‘esse imenso ridículo virou notícia’.

O que é notícia

Notícia é aquilo que o editor no poder disser que é. Reinterpretou (esquentou), viu-lhe um novo ângulo (pôs um molho), publicou, é notícia. Isto não se ensina em canto algum, até porque há sempre uma distância entre a Ética ensinada nas escolas e a prática do comum dos jornais.

Lembramos sem orgulho de um redator em Goiânia, que certo dia, na pressa de fechar a primeira página… Era madrugada alta. A página tinha um buraco, e o diagramador, de raiva e maldade com o último jornalista na redação, queria vê-lo em dificuldade. E somente havia uma única foto, para ilustrar a manchete do jornal do domingo. O aflito redator enviou então a única foto de um purificador de águas para que fosse diagramada em posições distintas. Com a legenda: ‘O mesmo purificador em um ângulo diferente’.

Não precisamos descer a tais ângulos de diferença. Mas uma olhada nos jornais do outro dia, da sexta-feira (5/8) no Recife, mostraria precisamente o que foi notícia para os editores que rejeitaram uma reportagem sobre o Encontro Nacional do Programa do Livro Didático. Em lugar da diversidade cultural e regionalização dos livros didáticos, que não mais devem falar de semáforo na cidade onde é chamado de farol ou sinal, por exemplo, o Diário de Pernambuco estampou o perigosíssimo perigo de ‘Raticida é vendido em bancas de camelôs’. Matéria importante, pelo espaço e lugar na página, na primeira do caderno ‘Vida Urbana’. Um aviso, quase uma homenagem a uma criação do Recife, daí a regionalização do termo, pois tratava de um violento agrotóxico conhecido pelo diminutivo de ‘chumbinho’, como os pernambucanos o chamam. Comeu, matou. Mas não de ridículo, porque mais adiante um colunista voltava ao tema, para maior realce: ‘Veneno também é arma’. Duvida?

A Folha de Pernambuco, por sua vez, na segunda página do primeiro caderno, em lugar da secundária declaração do presidente do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento Educacional), ‘somos o maior comprador de livros do mundo. Investimos mais de R$ 600 milhões de reais na compra do material’, em lugar de reproduzir e discutir a qualidade dessas aquisições, achou de melhor interesse público a matéria ‘Linha New Holland da Fiat é lançada para o nordeste’, que se abre com as linhas:

‘A Escavadeira Hidráulica E215LC e a Pá Carregadeira 12B/W130, da linha de equipamentos de alta performance da New Holland, marca internacional do Grupo Fiat…’.

E que se completava com as necessárias informações ‘a compra pode ser facilitada com uma entrada de 20% do valor total do equipamento, e saldo em 48 meses…’. O estômago não permite comentar.

O Jornal do Comércio, por fim, com sua linha mais sóbria, equidistante, em lugar de notícias, aparentemente sem importância, como o programa da compra de livros didáticos em braille para crianças e jovens cegos, ou de notícias como a ampliação para todos os estudantes brasileiros do que já é feito na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, a compra de livros de ficção pelo governo federal, descortinou o universo maior de ‘Homem preso ao invadir edifício’, que rico em detalhes, personagens e emoções, bem poderia ser material para qualquer escritor brasileiro:

‘A Polícia Militar prendeu ontem, no início da noite, Edson Bento da Silva, 26 anos, após ele ter invadido o edifício Praia de Itaguaré, nos Aflitos. Edson pulou o muro do prédio, às 17h, sendo visto por funcionários e moradores. O porteiro acionou o rádio-comunicador instalado pela Secretaria de Defesa Social e…’.

A notícia do fim

A omissão da notícia de um encontro desse porte, ou melhor, a ausência da discussão dos temas levantados por tantos educadores reunidos, que dariam motivo para textos mais substanciosos, da própria redação ou do mundo intelectual de Pernambuco, sobre a qualidade do livro didático que temos, ou sobre os programas educacionais que todos queremos, ou então sobre as possibilidades que seriam abertas para os autores pernambucanos, a omissão e ausência dessa notícia e discussão é apenas sintoma da rica vida de Pernambuco que não atinge as páginas dos jornais.

Para quem não sabe, este é o estado em que se encontram alguns dos mais maduros e criativos pintores do Brasil. Esta é a região privilegiada de poetas, de músicos, absolutamente anônimos, na melhor das hipóteses. Na pior, hostilizados, diminuídos da sua estatura, como o desenhista Rodolfo Mesquita. Este é o estado, enfim, de toda criação à margem. Daí que em seu lugar vicejem coisas teratológicas como esta manchete que reservamos para o fim, que nos presenteia com a sua altíssima aberração e sonoridade. Da Folha de Pernambuco, sábado (6/8):

‘Preço do chuchu aumenta 200%’.

Que é mais perfeito e estético, e curto, e grosso, que um ‘Recife é sede do Encontro Nacional do Programa do Livro Didático’.

Simples, não?

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Jornalista e escritor