Há um dito popular que atribui a certas pessoas ou instituições a faculdade de transformarem o que tocam em ouro. No caso da Rede Globo o material bruto acaba tornando-se um produto do consumo de massa com informações deturpadas e no qual apenas o lado que interessa é revelado. O famoso ‘padrão Globo’ – que em outros países é denominado, por exemplo, como american way of life – impera em tudo o que a emissora toca. A trajetória da cantora Elis Regina apresentada na noite de quinta-feira (28/12), no especial ‘Por toda a minha vida’ padeceu deste mal.
O programa (por assim dizer, pois não é possível enquadrá-lo como documentário, ficção, reportagem, seriado ou novela) não cumpriu a proposta anunciada no seu início e apresentou uma Elis muito ‘suave’ e ‘bem-comportada’, muito diferente da cantora de ‘O Bêbado e o equilibrista’ (‘o equilibrista’, não ‘a equilibrista’, como foi dito no programa) que o Brasil conheceu.
Quando apresentamos a história de uma personalidade não podemos esquecer a força que ela traz consigo. Afora isso, temos de considerar seus gestos e manias de acordo com o seu modo de vida, afim de que a ‘reconstituição’ possa ser exata a ponto de parecer real. O filme ‘Ray’ é um exemplo: ‘estudar’ o personagem é importante e sua história não pode, em momento algum, ser omitida. O que forma o artista é todo o contexto que o cerca e pelo qual passou. Filmes como Noel e o documentário Cartola também reforçam essa premissa. No caso em questão, a Globo não soube utilizar destas regras básicas em sua narrativa e fez uso de uma atriz que não se parecia com Elis, não tinha seus gestos, seu estilo ou sua ‘força’. Além disso, a intercalação de cenas reais com ‘reconstituições’ reforçou a inépcia da interpretação ficcional.
A isenção do entrevistador
Contar uma história é inserir na narrativa todos os fatos importantes, sejam eles socialmente aceitos ou não. Saído da sarjeta, livro biográfico sobre Charles Mingus, e o documentário Before the experience, sobre Jimmi Hendrix, deveriam ter sido levados em consideração pela emissora quando resolveu contar a história de Elis. No especial, nenhuma emissora em que ela trabalhou, excluindo a rede Globo, foi mencionada; suas brigas, discussões e a toda sua luta contra a ditadura foi tratadas sucintamente, com breves passagens; seu envolvimento com as drogas nem sequer foi mencionado no especial; suas incursões com o pessoal da Tropicália passaram apenas pelo depoimento de Gilberto Gil; seu jeito debochado e escrachado de ser foi tratado como excentricidade de uma pessoa especial; a Globo não transmitiu todo o ‘clima’ que acompanhava as letras das canções que ganhavam a voz da ‘pequena’.
Realizar entrevistas para compor uma argumentação no ‘contar uma história’ requer um certo grau de isenção do entrevistador. Vinicius, documentário sobre o poeta, sintetiza isso e utiliza diversos entrevistados – e não, entrevistadores – contando fatos e casos sobre a pessoa em questão. Vários são os títulos que se valem desse recurso em outras áreas que não a musical, como Edifício Master, Ônibus 174, Estamira, Muito Além do Cidadão Kane etc., fazendo dessa isenção do entrevistador fator básico em qualquer narrativa imparcial.
O que a Globo fez no especial sobre Elis Regina foi sepultar esse conceito e explicitamente mostrar o entrevistador e sua participação na história, a ponto de utilizar uma fala totalmente supérflua em relação à história da cantora, dita por Jair Rodrigues a respeito da primeira exibição de uma certa carta de Elis e a ele endereçada, referente ao nascimento de seu filho. Mérito da emissora, que em momento algum deveria figurar no programa. Sua função foi apenas a de mostrar o ‘potencial’ da Globo e em nada acrescentou, nem tampouco faz parte da biografia de Elis – que morreu em 1982, muito tempo antes da carta ser exibida pela primeira vez, em 2006.
A menina tímida que fez sucesso
Direitos autorais figuram entre as questões complicadas que envolvem qualquer trabalho autoral. Por isso, quando se utiliza imagens, músicas ou textos que pertencem a outras pessoas ou instituições, é necessário fazer menção da fonte. Infelizmente, a TV Cultura não recebeu seus créditos pelas imagens utilizadas de seu programa Ensaio, nem tampouco a rede Record pelas imagens de seus festivais. Novamente a Globo passou por cima das regras.
Elis foi sem dúvida uma das mais belas e importantes cantoras da música popular brasileira. Sua presença foi essencial num momento histórico e cultural nacional. Seu estilo influenciou e influencia gerações. As letras das canções que interpretava (Elis não compunha, fato que o especial deixa por entender, mas não explicitou) foram e são marcas de um Brasil muito além do que mostrava ou queria mostrar a imprensa de sua época. Seu sorriso, seus olhos e sua voz eram os de uma pessoa inquieta com a situação em que se encontrava o seu país. Por tudo isso, a mulher que dividiu o palco com Hermeto Paschoal no festival de jazz de Montreux não poderia ter sido retratada de uma forma tão mesquinha.
Certamente Elis, que nunca deixou de ser quem ela era, ficaria ‘p. da vida’ ao saber que toda a sua vida foi contada em cerca de uma hora, depois da novela e de um jeito que a transformou numa vedete do padrão Globo. Ela, que nunca aceitou rótulos ou tampouco calou quando o Brasil precisou que fosse dita a verdade, ficou sendo a menina tímida que saiu do interior para uma vida de sucesso na cidade grande. Um retrato muito simplório da mulher que consagrou algumas das mais belas canções da MPB.
Infelizmente tudo que a Globo toca acaba ficando medíocre. Perdoai-nos, Elis.
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Coordenador de comunicação, Jundiaí, SP