Em 14 de dezembro, agitou-se de norte a sul a Itália. Foi testada a confiança dos parlamentares no primeiro-ministro Silvio Berlusconi. Entre os deputados, registraram-se 314 votos a favor e 311 contra, o que manteve o magnata milanês no poder. Basicamente, foi isso que a imprensa brasileira noticiou, de forma tímida e até mesmo confusa. Poucos aqui souberam dos violentos protestos que pararam Roma. Ali, veículos foram incendiados e estabelecimentos comerciais e financeiros sofreram pesados ataques da multidão furiosa.
Mesmo na Itália, os telejornais não foram capazes de oferecer boas sequências de imagens dos confrontos de rua entre estudantes e policiais. A exposição mais nítida desses eventos chegou ao mundo pela internet, em vídeos produzidos pelo Corriere della Sera e por seu tradicional concorrente, La Repubblica.
Do ponto de vista do modelo de cobertura, as peças do Vídeo Corriere [ver abaixo] beneficiam-se de especificidades do meio virtual. As sequências são longas, quase sem cortes, desprovidas de narração. Pacotes informativos como esses não cabem nas reportagens televisivas cotidianas, necessariamente sintéticas e, muitas vezes, meramente ilustrativas do tema.
As tomadas da chamada ‘guerrilha de Roma’ nos canais online são secamente educativas, obtidas em vias esfumaçadas e cheias de destroços. O áudio alterna momentos de tenso silêncio e estrondos de bombas caseiras. Os registros comprovam a audácia dos cinegrafistas, mas também seus temores, nas correrias de fuga. De resto, constituem um retrato realista dos manifestantes e de suas estratégias de luta.
Em 1968, um ‘símbolo burguês’
Ao observador atento, as cenas apresentam ainda símbolos interessantes do processo político italiano. Para protestar contra il cavaliere, nobre codinome de Berlusconi, um combatente de rua utilizava um escudo improvisado. Nele, pintara a inscrição: ‘Il Cavaliere Inesistente’.
Há complexa simbologia nessa tomada. A princípio, parece uma anedota com o primeiro-ministro, considerado um ‘nada’, um ‘ninguém’. No entanto, o ‘cavaleiro inexistente’ é também um elegante e decente herói italiano, um coisa nenhuma de boa índole que habita uma armadura, fruto da imaginação inteligente de Ítalo Calvino, escritor italiano que participou da resistência ao fascismo e andou alinhado com o pensamento da esquerda humanista. Para fechar ainda mais essa malha de fios cruzados, cabe lembrar que Calvino foi colaborador do Corriere, que também publicou artigos de Pier Paolo Pasolini e de Umberto Eco.
As narrações visuais do quebra-quebra de Roma estimulam a reflexão sobre o próprio veículo milanês, o jornalão italiano por excelência, tão fascinante, complexo e confuso como a própria Itália. Fundado em 1876, é um jornal que historicamente surpreende. Se acolheu intelectuais de esquerda, também concedeu espaço aos conservadores. Nos protestos de 1968, foi considerado um ‘símbolo burguês’ e sua sede foi atacada pelos estudantes. Como paradoxo, realizou longas entrevistas com pensadores do porte de Herbert Marcuse, Edgar Morin e Jean-Paul Sartre.
Depois do atentado terrorista de Piazza Fontana (1969), promovido pela direita, tomou uma postura equidistante e, muitas vezes, de um legalismo cartorial, o que desperta novamente a ira da juventude de esquerda. Em 1972, sob a liderança de Piero Ottone, dá uma guinada à esquerda, mas encontra forte resistência interna. Jornalistas de peso resolvem deixar a Redação.
Berlusconi contra La Repubblica
Por vezes, o Corriere parecia riquíssimo. De repente, descobria-se em dificuldade. A partir dos anos 1960, como parte do grupo Rizzoli, seu controle acionário se converteu numa salada de empresas e investidores. Nessas tramas de créditos e débitos, acabou envolvido no escândalo da loja maçônica P2, de Lício Gelli, e do Banco Ambrosiano, de Roberto Calvi. A revelação dessas ligações feriu a reputação do jornal, que viu suas vendas despencarem.
A recuperação se deu nos anos seguintes, por conta do esquecimento popular e de um trabalho editorial que valorizou o fortalecimento das instituições democráticas. Em 2006, o jornal revelou-se favorável à eleição do bloco de centro-esquerda liderado por Romano Prodi. De alguma forma, todos os eventos de 14 de dezembro remetem ao território da guerra da informação. Berlusconi, dono do grupo Mediaset, é acusado de controlar boa parte da imprensa italiana, censurar informações e perseguir jornalistas. No campo externo, é famosa sua longa contenda de tribunais contra os britânicos da revista The Economist, que o consideraram inapto para governar a Itália.
Seu esquema de agressão silenciosa aos opositores está narrado no documentário Viva Zapatero!, da comediante Sabina Guzzanti, ela própria demitida da RAI por satirizar Berlusconi e a estrutura de seu império midiático, em 2003.
Em junho de 2009, durante um congresso da Confindustria, o primeiro-ministro conclamou os empresários a interromperem os contratos de publicidade com os jornais e revistas do grupo L´Espresso. Berlusconi acusou La Repubblica de atuar em favor do aprofundamento da crise econômica e de engendrar ataques subversivos para apeá-lo do poder. Em novembro deste ano, sugeriu que as pessoas não lessem mais os jornais que criticam sua licenciosidade. Disse trabalhar duro e admitiu que, de vez em quando, realmente olha para belas garotas. Segundo ele, isso é preferível a ser gay.
A ‘ação direta’
Diante das câmeras, Berlusconi costuma cometer outros desatinos. Faz piadas racistas e sexistas e, não raro, desrespeita outros chefes de Estado. Em 2009, por exemplo, recebeu pesadas críticas por conta de um depoimento à N-TV, emissora alemã, depois do terremoto de L´Aquila. Disse que os desabrigados deveriam ver a experiência como um ‘acampamento de fim de semana’.
Cabe agora lançar um olhar sobre os manifestantes da ‘guerrilha de Roma’. Segundo a imprensa, são membros dos Blocos Negros italianos. A designação deriva, sobretudo, das vestimentas escuras desses combatentes urbanos, que não raro usam capacetes de motociclistas (para proteção) e capuzes de esqui (para ocultação de identidade). Pelo menos em teoria, os Black Blocks italianos atuais descendem diretamente de seus similares alemães, criados na segunda metade da década de 1970. Esses grupos desenvolviam, sobretudo, atividades anti-nucleares, antifascistas e anti-capitalistas. Muitos membros chegaram a viver em comunidades solidárias alternativas. O termo Schwarze Block (Bloco Negro) passou a ser utilizado pela mídia alemã em 1980, depois que cerca de 20 mil pessoas realizaram um violento protesto em Berlim, destruindo uma área de comércio de luxo.
Grupos ‘autonomistas’ do gênero logo foram formados em outros países, como Holanda, Canadá, Grécia e Estados Unidos. Uma das principais características dessas células é a mobilização súbita, a ausência de lideranças oficiais e a prática da chamada ‘ação direta’, atitude de intervenção tática que caracterizou as antigas células anarquistas. Os círculos da história, porém, indicam que os blocos negros alemães receberam forte influência do autonomismo italiano de esquerda dos anos 1960, caso do grupo Lotta Continua, liderado por Adriano Sofri, e de Potere Operaio, comandado entre outros por Antonio Negri, convertido em respeitado teórico dos movimentos de massa e dos sistemas de comunicação-informação.
História que se repete
Cabe lembrar que boa parte dos conceitos de autonomismo e ação direta foram difundidos mundialmente a partir da experiência da Radio Alice, de Bologna, entre 1976 e 1979. A rádio ‘livre’ utilizava um antigo transmissor militar e tinha uma programação variada, que incluía discussões políticas, convocações para protestos e também música, declarações de amor e receitas culinárias. Em 1977, aliás, Bologna foi palco de violentos protestos autonomistas depois que um estudante foi assassinado pela polícia. Em 1979, o Estado italiano investiu fortemente contra os autonomistas, argumentando que apoiavam as Brigadas Vermelhas, responsáveis pela execução de Aldo Moro. Muitos militantes foram detidos e uma parte deixou o país.
As imagens da batalha de 14 de dezembro mostram a história em reconstrução permanente. Há jovens anti-Berlusconi que nasceram nos anos 90, muito depois dos exercícios autonomistas da geração de Negri. Há símbolos misturados, como bandeiras vermelhas de inspiração comunista que também carregam o ‘A com bola’ anarquista. Há gente menina que, sabe-se lá como, aprendeu a preparar uma bomba incendiária e atirá-la no inimigo. Há gente que leu Ítalo Calvino e soube compreender sua mensagem.
Nas imagens do Corriere, há uma história que inacreditavelmente se repete, mas sempre diferente:
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Il Cavaliere Inesistente**
Movimento**
La giornata della guerriglia******
Jornalista