Gay Talese tem uma qualidade muito especial e invejada: pode se dar ao luxo de falar o que quiser. Pela sua própria história e até, talvez, por ter chegado àquela idade em que podemos nos dar a certos luxos, como falar a verdade. Por isso, mirou no alvo e atirou, rápido e certeiro: ‘A imprensa matou Michael Jackson. Na verdade, já o vinham matando nos últimos cinco anos com todas aquelas acusações nunca provadas’. Talese, que conheci numa de minhas rápidas visitas ao New York Times onde, então, ele era um repórter especialíssimo, estava em Paraty, no Rio, participando da Festa Literária Internacional.
Dizem que Paraty é meio assombrada porque ali aportavam os piratas em busca de alguns prazeres (nunca explicados). Mas Talese já disse em um de seus muitos livros que não tem medo de assombração, circunstância que parece tê-lo ajudado muito na difícil tarefa de buscar a face oculta de seus entrevistados e a de manter (a um preço muito alto, ele reconhece) uma postura crítica sobre jornais e jornalistas.
O criador do que se convencionou chamar new journalism, o que quer que isso queira dizer, não conhecia Michael intimamente, mas sabia o quanto ele podia ser inocente de todas aquelas acusações que alavancaram as vendas da mídia americana durante anos a fio. Jornais, revistas, televisões, todos tiveram seus mais de 15 minutos de fama. A alta corte americana, que não brinca em serviço, não vende sentenças e mantém imprensa e governos sob o rigor da lei, absolveu Michael Jackson, reconhecendo que ele era mais vítima do que algoz. Já era tarde, muito tarde.
O que vende jornal é o inusitado
Diante dessas declarações de Talese, é difícil não voltarmos atrás e lembrarmos de alguns dos nossos nacionais demonizados por uma parcela importante de nossa imprensa, histórias em que, comprovou-se e revelou-se mais tarde, o único culpado foi a própria imprensa. Como esquecer o caso da, hoje mítica, Escola Base, cobertura que destruiu a vida de toda uma família, injusta e irresponsavelmente acusada pelo que nunca fez?
Alguém se lembra do caso Mário Gomes, ator global, em ascensão na época, vítima de uma sórdida armação orquestrada por parte de um marido traído (também ator, como ele, mas muito poderoso, então) e um jornal tão cúmplice quanto impiedoso? Mário Gomes nunca se recuperou, por mais que tenha tentado. A Justiça lhe fez justiça, a vida nem tanto. Mas foi o primeiro artista brasileiro a encarar a nossa face oculta, aquela à qual o Talese tantas vezes se refere em seus ensaios.
Não são os únicos e, todos sabemos, nem serão os últimos. Muitas vítimas já fizemos em todo o mundo, pequenas e grandes. Michael Jackson era um dos grandes e, também, o que valia mais. Leiloamos sua honra e, sabe-se agora, também sua existência. Louco, pedófilo, estranho, esquisito, aberração, excêntrico… Assim o desqualificamos durante quase toda sua carreira. E a única coisa que ele queria da vida era que o deixassem viver, ao seu estilo. Nos focamos nos aspectos particulares de uma pessoa que fugia ao comum, ao previsível, nos recusando a enxergar o todo porque o que vende jornal mesmo é o inusitado, o esquisito, o estranho, o louco.
O homem por trás do personagem
Era excêntrico? Quem conhece a fundo a História da humanidade sabe que o melhor dela foi movido a excentricidades e momentos de loucuras eventuais. Nunca mostramos aquele Michael Jackson que só agora, através de depoimentos tardios de seus verdadeiros e poucos amigos, propositadamente ignoramos. Era infantil, um homem que se recusava a crescer? Era. Transformou seus momentos mais pessoais num mundo da fantasia, com todos os sonhos irrealizados da infância? Isso mesmo. Mas conheço muito marmanjo poderoso cujo maior sonho de consumo é conhecer Disneyworld.
Penso agora em seus filhos e o que vamos fazer deles e com eles. São, hoje, um prato cheio para os que não cultivam a ética e o senso de responsabilidade em seu trabalho de informar – muitos, lamentavelmente. Onde quer que vão, o que quer que digam ou façam, serão notícia em todo o mundo. Eles o amavam e disseram isso alto e em bom som ao mundo inteiro, durante a comovente e inesquecível cerimônia de despedida preparada para ele em Los Angeles. Amavam suas excentricidades, seu unusual comportamento, seu jeito muito pessoal de exercer a paternidade, um companheirão, tão criança quanto eles, sabemos agora.
Difícil vai ser explicar um dia para eles por que o demonizamos tanto, por que nos recusamos a mostrar o homem por trás do personagem, por que não nos interessamos por seus inúmeros talentos, pelo legado que deixou para uma imensa parcela da humanidade, sobretudo porque nunca mostramos como ele, realmente, gostaria de ser conhecido e reconhecido: um bom garoto. Mas bondade não vende.
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Jornalista