Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O que o público quer de jornais e jornalistas

As bases do jornalismo tal qual hoje o conhecemos e reconhecemos nas sociedades democráticas foram dadas no século 19, quando a imprensa consolidou-se como a primeira mídia de massas do planeta. Deixou de ser panfletária, ideológica, partidária, para adotar a notícia como paradigma. Um número maior de profissionais começou a dedicar-se a uma atividade agora imbuída de um novo objetivo: fornecer informação – no lugar de propaganda político-ideológica – a um público a cada dia mais amplo. Isso resultou importante para a vida em sociedade e o acesso à informação passou a ser compreendido como um direito, como uma demanda social legítima.

Os jornais tornaram-se um negócio quando se dedicaram a distribuir notícias e análises baseadas em fatos, e não apenas em opiniões – conquanto, na contramão, tivesse aparecido também um jornalismo de cunho marcadamente sensacionalista, que mais tarde levou ao paroxismo a idéia da informação como mercadoria. A yellow press – ou ‘imprensa marrom’, como chamamos no Brasil – é apenas uma das deformações da atividade jornalística.

A qualidade da informação como motor da credibilidade pública revelou-se essencial para o negócio então nascente e, também, para o reconhecimento público de um jornalismo comprometido com a exatidão e a precisão das informações. Esta terá sido a sementeira da qual nasceram e frutificaram os valores que ainda hoje são identificados com o jornalismo. (A lista é do professor Nelson Traquina, da Universidade Nova de Lisboa, e os comentários, meus.)

O primeiro valor:

** a NOTÍCIA – e tudo o que ela tem de original, de útil à vida das pessoas, de oportuno e de imprevisível;

** a BUSCA DA VERDADE – o que significa produzir a matéria jornalística mais exata e precisa, com base num compromisso ético com a audiência, na observação desprovida de parti pris e em fontes de informação dotadas da maior fidedignidade possível.

Mais:

** a INDEPENDÊNCIA – a nossa atividade não pode prescindir do espírito crítico e não deve estar atrelada a outro interesse que não o interesse público;

** a OBJETIVIDADE – ou seja, a objetividade possível, aquela subjugada à verdade factual;

** e, finalmente, o principal: a noção de que o jornalismo é, acima de tudo, um SERVIÇO PÚBLICO.

Se é um serviço público, o que exige o público dos veículos e dos jornalistas?

O fato de a atividade jornalística estar atrelada a um negócio não a deslegitima nem a desqualifica; mas, em contrapartida, obriga-a à observância de algumas premissas essenciais.

A principal delas é que estamos falando de um negócio sim, mas de um negócio que constitui uma atividade econômica ao mesmo tempo privada e pública. Sua natureza empresarial convive com a condição de supridora de informações necessárias e muitas vezes decisivas nos processos de participação da cidadania nos controles públicos.

Isto nos leva a entender o livre exercício do jornalismo, e o papel da imprensa nas sociedades, como condição básica da democracia e da liberdade. E também a entendê-lo como uma atividade a ser desenvolvida sob o marco do interesse público, que tem no leitor, telespectador, rádio-ouvinte ou internauta o juiz supremo de seu desempenho.

A liberdade de expressão e da atividade jornalística está garantida na Constituição dos países democráticos, o que presume contrapartidas em matéria de deveres e de responsabilidades. Jornalistas e empresas jornalísticas, portanto, devem satisfações à sociedade a que servem.

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Adentramos este milênio assistindo a um processo inaudito de concentração dos meios de comunicação, convivendo com os perigos dos monopólios e dos sistemas de propriedade cruzada, e, em especial, com numa visão mercadológica que privilegia o entretenimento em lugar da informação. A concentração do controle dos meios, como se sabe, compromete a pluralidade de idéias e de interpretação dos fatos.

Na esteira da globalização dos mercados e dos sistemas produtivos, empresas jornalísticas radicalizaram a oferta de produtos descartáveis, apostaram na irrelevância e na futilidade, e adotaram a lógica do lucro a qualquer custo em lugar de suas responsabilidades sociais e de seu compromisso pedagógico de formadoras de opinião. Como corolário, os padrões éticos se diluíram e se esgarçaram.

Reitere-se o compromisso pedagógico da imprensa para com a sociedade a que serve. A imprensa ensina e faz pensar. Por isso é preciso atenção para o fato de que um jornalismo de baixa qualidade tende a mascarar o padrão de exigência dos leitores (ou de parte deles), agora inclinados a não perceber mais os erros porque se acostumaram a eles. Disso resulta que se habituam a não mais exigir um bom jornalismo, a não demandar os comportamentos éticos essenciais à atividade jornalística.

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A popularização da internet, a partir dos anos 1990, agudizou o problema, produzindo uma overdose diária de informações sem análise nem seleção – o que, em geral, pode significar informação nenhuma.

As empresas jornalísticas transferiram para a web suas edições físicas e demoraram a entender que a interatividade e a conectividade são duas revoluções ainda incompletas, ainda em processo, e que irão determinar os padrões de relacionamento interpessoal, social e mercadológico das próximas gerações. Vivemos agora os primórdios da consolidação de uma infra-estrutura que, mais adiante, constituirá a base de uma economia digital.

Entender esse ambiente mutante implica considerar que no meio digital multimídia ninguém tem a prioridade do discurso. Ou seja, a postura unilateral, unívoca, que tradicionalmente marcou a relação dos meios de informação com seus públicos já não mais se sustenta.

Pensar o jornalismo hoje pressupõe fazê-lo na perspectiva da convergência e da complementaridade de mídias.

À nossa pergunta inicial: o que o público está a exigir dos meios de informação e dos jornalistas?

Tudo e mais um pouco. Sobretudo um relacionamento mais respeitoso. Aliás, relacionamento é o nome do jogo – e honestidade de propósitos, confiança e credibilidade os valores mais caros dessa relação. Quem logo não compreender isso sentirá a perda de audiência.

Exemplo recente foi apontado pelo estudo ‘The State of the News Media 2004’, divulgado em março deste ano pelo Projeto para a Excelência em Jornalismo da Universidade de Colúmbia. Ali está mostrado que nos Estados Unidos os meios tradicionais de informação estão perdendo público, bem como receita e credibilidade. Os websites jornalísticos (com crescente aceitação dos blogs), a imprensa alternativa e as publicações étnicas são os únicos segmentos que cresceram naquele mercado, no período analisado. Mercado este, aliás, no qual 22 companhias têm influência sobre 70% da circulação de jornais, e outras 10 companhias controlam emissoras de TV que atingem 85% da audiência do país.

Hoje a tecnologia permite ao público o exercício de um poder que este não tinha antes do estabelecimentos dos atuais padrões de conectividade e interatividade. O cidadão-consumidor, individualmente ou por intermédio de organizações sociais a que pertence, tem, agora, mais e melhores condições de exercer um contrapoder ao poder da mídia. Em resumo, é a democracia avançando quanto mais se iluminam as sombras que até então ocultavam as normas, os métodos e a avaliação de resultados da produção profissional de notícias.

Deu-se sob este marco a criação do Observatório da Imprensa. Em edições regulares na internet desde abril de 1996, e utilizando-se das técnicas e da linguagem comuns não só aos produtores como aos receptores de informação, o Observatório pretende convencer o leitor de que ele próprio (o público) pode ser o ‘repórter da reportagem’. E que, assim agindo, nunca mais o seu olhar sobre a mídia será o mesmo.

Dez anos atrás, num seminário na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o Observatório começou como sonho de um grupo pequeno de pessoas, converteu-se em realidade com a agregação de mais gente ao projeto, multiplicou-se graças à adesão dos primeiros usuários da internet no Brasil, e espalhou-se pelo país com a participação de cidadãos atentos ao desempenho dos meios de informação.

Nossa consigna é ‘Você nunca mais vai ler do jornal do mesmo jeito’ – em si uma proposta de converter o leitor-ouvinte-telespectador num cidadão mais exigente, e ao mesmo tempo uma provocação com vistas ao estabelecimento de um ceticismo salutar entre os destinatários da informação.

Propomos a observação da mídia como forma de atuação, a observação como intervenção, a observação como estímulo à promoção da excelência. Jornais e os jornalistas, sabendo-se observados e comentados pelo público, naturalmente mudam comportamentos e mais se conscientizam das questões relativas à qualidade jornalística.

Nosso projeto quer atuar na formação profissional; junto à sociedade, motivando-a para exigir mais de sua imprensa; e na recuperação, em todos os níveis, da noção de excelência em jornalismo

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A ação geradora do OI foi o seminário ‘A imprensa em questão’, realizado na Unicamp, em abril de 1994, e que marcou a criação do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) daquela universidade. O Labjor investiu na promoção de outros seminários até que o grupo fundador convenceu-se de que as questões discutidas nos diferentes eventos deveriam ser levadas ao debate público.

A primeira idéia foi a produção de uma revista, mas os custos de impressão e distribuição inviabilizaram a iniciativa. Daí a opção por uma plataforma à época recém-disponível – a internet.

Em abril de 1996 foi para a web a primeira edição online do Observatório da Imprensa (todas as edições são encontradas na estação Edições Anteriores do sítio www.teste.observatoriodaimprensa.com.br). De lá para cá, reforçaram-se entre nós as noções de que:

1. a mídia tem responsabilidades com sua audiência;

2. a observação contínua do desempenho da imprensa deve ser convertida numa atividade jornalística regular; e

3. nenhuma atividade relacionada com o estudo da mídia pode ignorar a interface com o público.

No Observatório, o público pode se manifestar e participar o quanto queira num processo do qual, até então, desempenhava o papel de agente passivo.

Começamos sem periodicidade definida, mas em novembro de 1996 o Observatório tornou-se quinzenal. Dois anos depois, as edições passaram a semanais.

Em maio de 1998, o projeto chegou à televisão com a estréia do Observatório da Imprensa na TV, conduzido por Alberto Dines, em edições semanais transmitidas ao vivo, às terças-feiras, para todo o Brasil, pela rede pública de emissoras educativas.

A combinação dos dois formatos – internet e TV aberta – contribui para realimentar a agenda de debates sobre a mídia e produz uma interação entre públicos ainda diferentes, mas que no futuro próximo poderão integrar-se pela tecnologia.

Operamos como um misto de fórum e de veículo jornalístico. Temos produção própria e publicamos tudo o que nos chega, com a condição de que o foco dos artigos e mensagens seja a mídia, seu desempenho e suas responsabilidades. Censuramos as ofensas pessoais, a apologia ao preconceito e manifestações nazi-fascistas.

Depois de oito anos e meio de presença regular na internet, e de cinco anos na televisão, nossa pretensão continua sendo a de estimular o debate público sobre o desempenho da mídia. E contribuir para que as demandas éticas e sociais do público sejam vocalizadas, debatidas, de algum modo supridas e consideradas pelos veículos jornalísticos e pelos jornalistas.

Mesmo eventualmente desagradando quem confunde crítica com ofensa pessoal, o Observatório tem hoje presença na imprensa brasileira porque engajou-se na sua qualificação. Malgrado todas as dificuldades materiais, em maio de 2002 tínhamos, em média, 500 mil páginas vistas por mês. Em maio de 2004, pulamos para pouco mais de 2 milhões de page views mensais. De 100 mil unique visitors mensais contados em maio de 2002, dobramos essa média em julho de 2004. Entre os dias 1 e 25 de agosto, o site teve exatos 204.824 visitantes únicos – média de 8.100 visitantes únicos por dia.

Em comparação às audiências dos websites de sexo, celebridades, entretenimento ou compras, é uma visitação pequena. Mas se trata de audiência qualificada, como demonstra a origem das mensagens e artigos que recebemos e publicamos.

Estimulamos a criação de mais e mais observatórios. Nosso público é composto de pessoas que, talvez mesmo sem sabê-lo, concordam com o jornalista Cláudio Abramo (1923-1987), um ícone da imprensa brasileira. Dizia ele:

‘O jornalismo é o exercício diário da inteligência e a prática cotidiana do caráter.’

Por falar em Abramo, dele um dia ouvi o seguinte:

‘A boa matéria jornalística é aquela que você lê para um analfabeto e ele entende tudo. Tudo.’

Melhor assim.