Hoje (2/8), a imprensa divulga o feito desportivo: ‘Cesar Cielo é o primeiro homem a nadar 100 metros em menos de 47 segundos’. Há cerca de um mês, as autoridades de saúde anunciavam que a gripe suína já se propagava em território nacional. Para a maioria das pessoas, a quem os filósofos e linguistas profissionais eventualmente chamam de homens comuns, as duas notícias não têm qualquer coisa semelhante. Para esses profissionais tão perspicazes quanto pouco requisitados, porém, as implicações epistemológicas e semânticas são patentes.
O linguista Noam Chomsky, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, perguntou: como uma mente limitada é capaz de aprender uma língua ilimitada? O problema incitado por esta pergunta tornou-se um dos fundamentos do paradigma estabelecido com a emergência da sintaxe gerativa, sobretudo em relação aos estudos de aquisição da linguagem. O filósofo Paul Grice (1913-1988), da Universidade da Califórnia, tornou-se conhecido por um estudo cuja motivação pode ser apresentada através de uma pergunta estruturalmente semelhante à de Chomsky: como mentes singularmente diversas e diretamente inacessíveis entre si são capazes de se comunicar eficientemente? A resposta, compilada no que veio a ser chamado de Regras Conversacionais de Grice, tem presença obrigatória em qualquer manual contemporâneo de teoria do discurso ou de pragmática. Trata-se de um conjunto de acordos tácitos, inerentes à comunicação verbal e supostamente universais, que permitem, entre outras coisas, ao funcionário desculpar-se pelo atraso, assim que seu supervisor pergunta ‘que horas são’.
Fato não pode ser provado
Uma dessas regras preconiza supormos que nosso interlocutor acredita ser verdadeiro aquilo que ele mesmo diz ser verdadeiro. O sucesso do jornalista, que se passa por um cliente legítimo apenas para obter a prova da má oferta, é fruto desta regra. O autor da má oferta não espera ter diante de si um ator, alguém que infrinja as Regras Conversacionais de Grice.
As Regras de Grice também incidem sobre a especificidade e a quantidade da informação. Quem é mais específico do que o necessário é comumente reconhecido como um pedante. Os tagarelas disponibilizam informações além da medida.
A manchete esportiva citada é perdoavelmente ufanista, sob o disfarce da objetividade e concisão jornalísticas. Ainda que possa ser verdade que Cielo nadou os 100 metros mais rapidamente do que qualquer outro homem, isto tanto não pode ser provado quanto é improvável. Crítica semelhante foi feita por Karl Popper (1902-1994) à pseudo-cientificidade da psicanálise. O fato não pode ser provado porque outra pessoa é capaz de ter realizado a façanha fora de uma competição esportiva e é improvável porque pelo menos o próprio Cielo deve ter sido essa pessoa, sob os olhos esperançosos do treinador, nas muitas horas de preparação.
Crença equivocada
Retirada a ênfase perdoavelmente ufanista, o autor da manchete queria dizer que uma certa instituição promotora dos esportes aquáticos concedeu o recorde dos 100 metros ao nadador Cielo. O jornalista não faz menção à instituição promotora dos esportes aquáticos apenas porque não espera que seus leitores ponham em dúvida a competência da instituição. Infelizmente, para Cielo e os demais atletas de elite, seus recordes mundiais pertencem, antes, às instituições que os concederam do que a eles mesmos, assim como a propriedade é antes da força bélica que a garante contra terceiros do que do ingênuo, cooperativo e crente proprietário. O jornalista coloca-se entre os que não duvidam da competência da instituição, ao revés de induzir seu leitor a não dar importância ao papel primordial da mesma. A calibragem entre o suficiente e o necessário é um problema além da formulação das Regras de Grice.
O mesmo raciocínio cabe à propagação da gripe suína. Aos leitores inadvertidos escapa que haver o primeiro caso de transmissão sustentada do vírus no país é consequência de, pela primeira vez, não ter sido possível à autoridade nacional de saúde o rastreamento da origem externa. O que a imprensa deve informar? O fato original ou a formulação daquilo que se presume ser sua consequência?
Sabe-se que a isenção e objetividade são tão difíceis de serem encontradas, na vida real, quanto o hipogrifo e o Saci Perêrê. Mesmo o tradicionalmente confiável conhecimento das ciências matemáticas pode ser posto em dúvida por espaços geométricos não-euclidianos ou fundamentos intuicionistas que dificultem as provas por redução ao absurdo. Espera-se que os matemáticos e os jornalistas sejam suficientemente perspicazes, não a ponto de dar fim às dificuldades, função evidentemente reservada aos filósofos e aos linguistas, mas a ponto de, pelo menos, não induzirem seus leitores à equivocada crença de que as dificuldades não existem.
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Professor do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC