O Brasil já tem uma mitologia política. Não somos mais governados por homens, por políticos. Somos governados por mitos. Um desavisado qualquer que se detivesse sobre a análise da atual crônica política brasileira não chegaria a conclusão diferente: somos uma República de mitos. Desfilam em nosso panteão de deuses o primeiro presidente operário, a primeira presidente mulher e, chute dos chutes, podemos assistir ao nascimento da primeira presidente mulher negra (ou alguém dúvida que Marina Silva é, desde já, candidata em 2014?). Todos mitos.
Um mito não se constrói sem a complacência de boa parte da imprensa. Ela lhes dá um rótulo, uma identidade, uma embalagem com a qual se apresentam ao público. Ao fim, satisfeita com seu trabalho, rende-se ao mito, alimenta-o, engrandece-o e, raramente, mata-o.
Na última semana, assistimos à construção de um novo mito: o do senador vitimizado. Vitimizado e intempestivo. Trata-se de Roberto Requião. O peemedebista causou alvoroço na mídia após tomar, à força, o gravador usado por um jornalista e, não contente, apagar o seu conteúdo simplesmente porque se sentiu ofendido com a pergunta. O tema é sensível ao senador: a aposentadoria que ele recebe pelo tempo em que foi governador do Paraná.
Como se não bastasse, no dia seguinte Requião foi à tribuna dizer que era vítima de bullying. Não, senador, o que o senhor faz é uma tentativa de acossar a imprensa. Faz-se o jogo sujo da manipulação. O senhor alega que a imprensa lhe é desfavorável na esperança de que ela se esforce para provar o contrário. Alguém vai lembrar isso a Requião? É pouco provável. Estamos, todos, convencidos de que esse é o jeito do senador e não há nada a se fazer. José Sarney, nada mais nada menos que presidente do Senado, saiu em defesa do colega. Esqueceu-se da sua obrigação, à frente de uma instituição fundamental da democracia, para sair em socorro do amigo.
É preciso dar a César o que é de César
Mas qual é o efeito deletério do mito para a democracia? O problema é que para a existência do mito ser completa é necessário calar quem dele discorde. A existência de mitos corrói o debate democrático, empobrece-o, tira-lhe o essencial: a presença do divergente. Não há democracia que sobreviva ao aniquilamento do contrário. Não há sistema democrático que não sucumba ao soterramento da divergência. Não há democracia que possa sobreviver sob o governo de mitos.
O mito é inimputável. Seus crimes, seus deslizes, são meros rompantes de fúria, meros esguichos espontâneos de suas personalidades que devem ser perdoados, relevados em nome do bem que eles proporcionam. Assim, quem critica o primeiro presidente operário é preconceituoso, é elitista; quem critica a primeira mulher presidente é machista; quem critica a primeira presidente mulher negra é racista e machista (se for católico, é um pária).
Não precisamos ser governados por operários, mulheres, industriais, negros, ricos, pobres, homossexuais, heterossexuais, brancos ou amarelos. Precisamos de pessoas comprometidas com políticas públicas, e isto independe destas variáveis. É preciso dar a César o que é de César. É preciso devolver os mitos à mitologia e os políticos à política.
É preciso que voltemos a ser governados por políticos, não por mitos.
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Jornalista, Curitiba, PR