Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O ‘seu’ João e o jornalismo

Marcele, a mais nova, casou na semana passada. E casou bem. Um cara legal, bacana… e bem de vida. Foram morar num condomínio desses novos lá na Zona Norte. O Juarez, o do meio, engajou no Exército e sonha com uma vida estabilizada. Acho que, fora a política, ser militar é a única coisa garantida neste país, justifica Juarez sempre que lhe perguntam do quartel. A Martinha, a mais velha, trabalha na prefeitura há anos. Já tentou casar uma centena de vezes e nunca deu certo. O pequeno Betinho é a lembrança de um desses relacionamentos. É um guri sapeca. Faz 5 anos domingo que vem. Aconteceu. Foi no namoro com o Evandro. Conheceu-o quando estudava Legislação pra prestar prova pro concurso da prefeitura. Ele ainda mora ali pertinho da quitanda e às vezes vem buscar o Betinho pra algum jogo do Zequinha.

A quitanda é do seu João. O pai da Marta, do Juarez e da Marcele. Não consegue ficar parado. Logo que se aposentou como encarregado de manutenção, resolveu alugar uma pecinha na esquina perto de casa e montar uma quitanda. Dessas que vendem frutas e verduras fresquinhas e de vez em quando até tem preços mais baixos que o supermercado.

Seu João aprendeu a ser vendedor e a entender de frutas e verduras quando morava com os pais em Farroupilha há uns 53 anos – 54, para ser exato. Ele costuma contar que o seu pai foi o primeiro agricultor de lá a conseguir vender alguma coisa aqui pra capital. Diz que costumava vir com o pai vender as coisas na Ceasa. Conhecia todos e conversava com todos. O seu Osmar das rosas, o seu Jorge das beterrabas, dos aipins e das batatas. Lembra do velho Rui que já tinha uns 80 e lá vai paulada e continuava firme vendendo suas maçãzinhas que trazia de Vacaria. A dona Maria e o seu Alípio vinham de Bento vender uva na capital. Esse era o mais gente boa. Quando seu João ia embora sentia a barriga graaande… cheia de uva… tudo bondade do seu Alípio. Uva da boa.

Hoje, seu João vive de vender suas próprias frutas. E ensina ao Betinho a arte de ser um bom vendedor. Assim como era o teu bisavô, Betinho. Seu João acorda cedo. Três vezes por semana, compra as frutas e verduras na Ceasa ainda antes de muita gente acordar. Nos outros dias, sete horas já está abrindo a quitanda. Escolhe as frutas melhores e joga pra cima das mais passadinhas. Até o movimento aumentar, seu João aproveita pra dar uma lida no jornal. Diário Gaúcho. Ah, é melhor, diz ele. Uma que é mais barato e outra que a gente vê coisa da vida da gente, né? Outro dia eu li sobre o meu vizinho que foi preso. Ele era traficante e eu nem sabia, conta, enquanto exibe a prótese dentária que ganhou da filha ano passado.

– A batata, tá quanto?

– A Branca meia cinco e a Rosa cinqüenta.

– E a banana?

– Caturra um e dez e a catarina um e meio.

– Não tá ruim não a banana… a batata levo amanhã. Vou esperar esse gringo baixar o preço.

– Não chora seu Valdemar, é o preço. Vai ver quanto tá lá no mercadão vai…

Passa o dia na quitanda. De meio-dia, vai pra casa. Dona Lurde, esposa de seu João há 25 anos, nunca gostou muito de cozinhar mas nunca ninguém percebeu nada. À tarde, volta pra quitanda e só chega em casa quando o alaranjado do pôr-do-sol começa a aparecer. Sem a quitanda, a vida do seu João seria menos… vida, digamos. Ali ele vê os anos passarem enquanto se diverte, trova com os vizinhos, toma chimarrão e lê o Diário. Soube esses dias pelo seu Valdemar, que assina o Correio do Povo, que o Lula anda viajando tanto quanto o FHC. Achou uma pouca de uma vergonha. Passa governo e entra governo e continua tudo a mesma coisa, resmungou. Má não muda nada nunca, sacramento!

‘O que é importante pro seu João que está ali na quitanda todos os dias, levando sua vida, vendendo suas bananas?’

A frase é da ex-assessora de Comunicação da CUT-RS, Cátia Marco. Nos encontramos ano passado em sua casa. Eu precisava fazer um trabalho sobre Teorias do Jornalismo e ela me atendeu com bastante gentileza. A frase surgiu ali. Ela mencionou o seu João. Assim, sem nada muito bem pensado. Acabou criando o meu personagem. A Cátia é uma jornalista que aprendeu a pensar o jornalismo da forma avessa. A notícia sindical é, por natureza, assim: jornalismo pra comunidade. Ela critica o nosso tradicional jornalismo das elites. Em que o mais importante são os índices da Bovespa e a cotação do euro. E as bananas do Seu João?

‘Cátia, o que tu pensas das teorias que dizem que a notícia está subordinada aos capitais políticos, econômicos e sociais?’, perguntei. ‘Acho que está subordinada, sim’, disse ela. ‘E isso acaba tornando a notícia distante da realidade de pessoas simples. O que é importante pro seu João que está ali na quitanda todos os dias, levando sua vida, vendendo suas bananas? A Guerra do Iraque pra ele é muito distante. Como tu aproximas as pessoas da notícia?’

A globalização é um dos maiores desafios do jornalismo nesse século. É exatamente ela que desencadeou um processo que aproxima as pessoas da relevância da notícia. É desse ponto de vista que enxergo as coisas. O desafio está em servir as massas de uma informação que possa importar a todos. Este é um século sem distância, sem espaço de tempo definido e que não tolera desinformação. São toneladas delas que são despejadas sobre nós a cada dia e somos obrigados a incluir em nossa agenda a tarefa de saber tudo. Ou quase tudo.

Na época, até fiquei bastante preocupado com o tipo de jornalismo que estava me preparando para praticar. Será mesmo um jornalismo das elites? Pra poucos? Confirmava isso vendo o grande público que o Diário Gaúcho conquistava a cada dia. Havia, sim, um público distinto. Um que lia Correio do Povo e ficava satisfeito em saber que a Guerra do Iraque acabou e outro que ficou também satisfeito porque o prefeito prometeu fechar o valão que passa do lado da casa de sua sogra. Esse lê o Diário Gaúcho, vamos supor.

E há, ainda, um público distinto. De um deles é que ainda sobrevivem (e em abundância) os jornais de apelo popular e os jornais das comunidades.

É histórica a necessidade de um povo de querer ver falarem de si, das suas coisas, dos seus jeitos. Nas primeiras comunidades alemãs que ajudaram a colonizar o Rio Grande do Sul já se via o velho e bom jornalzinho da comunidade.

O espirro da galinha

O que comecei a pensar de novo nesse jogo é que, com a globalização, a notícia que interessa pro seu João e suas bananas já interessou ao leitor do Correio do Povo algum tempo atrás. E tende a interessar aos dois no mesmo dia até. Cada vez mais e com mais velocidade, um acontecimento macro gera repercussões práticas no micro. O preço do óleo que o seu João compra pra vender na quitanda é resultado do preço da soja que o cara que faz o óleo pagou. Esse preço da soja é fruto de alta ou baixa das balanças comerciais que, sabe lá por que cargas d’água resolveram oscilar.

Não que fenômenos desse tipo sejam novidades. Claro que não. O fenômeno que destaco é que parece que a cada dia a velocidade com que esses dois fatos – o micro e o macro – vão influenciar um ao outro é muito grande.

Bastou aparecer nos jornais a gravidade da crise da italiana Parmalat que já se ouviram rumores de que o preço do leite iria baixar. E baixou mesmo. Foi uma medida adotada pela Parmalat Brasil para se ver livre dos estoques. A queda dos preços acirra a concorrência e só quem ganha são os consumidores. Como o seu João.

Foi a galinha oriental dar o primeiro espirro que a mulher do seu João, a dona Lurde, foi logo pensando que o quilo do frango ia baixar e ela ia aproveitar pra congelar bastante. Ouviu da vizinha que tinha alguma coisa a ver com as exportações brasileiras. Parece que o frango brasileiro é bem mais limpinho e não tem problema de pegar gripe, é uma coisa assim, explicava a vizinha.

– Bom dia, seu João. Quanto tá a batata gringo?

– A Branca setenta e a Rosa cinco cinco.

– Má tá mais caro que ontem? Má que gringo sem-vergonha, tchê!

– Te acostuma, seu Valdemar, te acostuma. A coisa tá feia… é o euro subindo, a inflação alta, Nasdaq em baixa e as exportações que o diabo gosta…

– Hein?!

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Estudante de Jornalismo da Unisinos, RS