Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O silêncio dos influenciáveis

Como reagiria a opinião pública de uma nação soberana se tomasse conhecimento, por meio de conceituada publicação jornalística, que sua Polícia Federal foi comprada por serviços de inteligência de um país estrangeiro? Que as instituições republicanas são inteiramente controladas por redes de espionagem, e setores expressivos da imprensa local cooptados para produzir uma imagem favorável aos interesses da potência controladora? Seria impossível conter o terremoto político advindo de tais revelações, salvo se um isolamento acústico fosse imediatamente construído por aqueles que elaboram a agenda da opinião pública. E é nesse ponto, no silêncio consensual do complexo midiático, que reside a atualidade deste pequeno artigo.

Reportagem de capa da edição de CartaCapital, com data de 19/3/2004 ,traz à tona um personagem que poderia ter saído das páginas de qualquer romance de John Le Carré. Versão tão patética quanto real do ‘espião que sabia demais’, o português naturalizado americano Carlos Costa chefiou o FBI no Brasil de 1999 a outubro de 2003. Em entrevista ao jornalista Bob Fernandes, ele foi categórico:

‘Os Estados Unidos compraram a Polícia Federal. Há um antigo ditado, e ele é real: quem paga dá as ordens, mesmo que indiretamente’.

Não descartando a possibilidade de alguma agência americana ter grampeado o Palácio da Alvorada e o Itamaraty, Costa disse que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), ao pedir equipamentos e recursos ao mundo todo, ‘se prostitui’.

Não menos contundente é sua afirmação segundo a qual uma das mais importantes funções da embaixada americana no país é manipular a imprensa brasileira . Usando, eufemisticamente o verbo influenciar, o ex-agente não poderia ter sido mais claro:

‘Detectamos jornalistas que sejam pró-América e os convidamos a ir aos Estados Unidos com todas as despesas pagas. Essa não era minha área, mas começa assim. Influenciar é mudar o pensamento contrário aos nossos interesses’.

E qual seria o modus operandi? Mais uma vez, Carlos Costa é direto: ‘Seja lá o que for necessário. Se é comprar, é comprar, há várias maneiras. Mas deixa isso pra lá’.

Eis o cenário da atual realidade brasileira. Agindo com total desenvoltura, uma profusão de siglas tais como a US Customs, DEA, NAS, CIA e FBI fazem de nossa legislação letra morta e tornam o conceito de soberania nacional, numa perspectiva otimista, uma hipótese a ser permanentemente verificada. Temos,enfim, polícias compradas e submetidas a comandos externos, uma Abin prostituída e formadores de opinião ‘influenciados’. O quadro se torna mais dramático quando o monitoramento de setores estratégicos do governo é apresentado como rotina.

Grampo no palácio

O que chama a atenção é a ausência de repercussão da matéria de CartaCapital nos movimentos sociais mais combativos, no Congresso e, acima de tudo, em outros veículos jornalísticos. Por conta de episódios de gravidade bem menor, fala-se em crise de governo, perda de capacidade administrativa e riscos à coesão social. Clama-se pela instalação de Comissões Parlamentares de Inquérito e o alarido udenista se reflete nos editoriais das empresas que abrigam aqueles a quem Costa chama de ‘os influenciáveis’.

A título de exemplo, por que a denúncia da revista dirigida por Mino Carta não provoca a mesma comoção que o destempero do ministro José Dirceu em entrevista ao jornalista Merval Pereira, de O Globo?

Desde sua publicação, o espaço concedido à reportagem de Bob Fernandes foi praticamente inexistente. Uma ou outra nota, até o abafamento total. Qual será o motivo do silêncio reinante nas redações dos principais jornais e revistas do eixo Rio-São Paulo quando o assunto é a ingerência imperialista na política brasileira?

Há cinco anos, CartaCapital sistematicamente denuncia o aparelhamento do Estado por agências americanas. Para ser mais preciso, vem historiando um processo que se inicia em 12/4/1995, quando é assinado o Acordo para Combate ao Narcotráfico, e se estende aos dias de hoje, com a DEA efetuando pagamentos a policiais brasileiros.

Na edição de 3/3/1999, a revista já apresentava a CIA controlando o antigo Centro de Dados Operacionais (CDO). À época, Fernando Henrique Cardoso teve grampeada uma conversa com o então chefe do Cerimonial da Presidência da República, embaixador Júlio César Gomes dos Santos.

Pacto de silêncio

A que devemos o silêncio dos ‘influenciáveis?’ Traria a matéria denúncias graves sem a verificação adequada? Ausência de fundamentação empírica que indicasse sensacionalismo ingênuo ou petição conspiracionista? Não, CartaCapital tem feito um belo trabalho investigativo. Na última edição, à riqueza de detalhes somam-se fotos que documentam a desenvoltura de Carlos Costa nos salões do poder.

Seria conseqüência da lógica concorrencial das empresas jornalísticas, ignorar os fatos noticiados por veículos rivais? Ante a magnitude do assunto, é pouco plausível uma argumentação de cunho puramente mercantil.O mais sensato seria aprofundar a matéria, focalizando atores políticos relevantes, diretamente envolvidos na questão, tais como militares e estrategistas.

Estaríamos, então, nos deparando com um fenômeno hierárquico presente no interior do campo jornalístico? A existência de um veículo, e apenas um, que pautaria os demais ? A história recente da imprensa brasileira impossibilita tal conjectura. Diferentes publicações puxaram o fio da meada de assuntos relevantes e foram seguidas pelas demais. Basta lembrar que o impeachment de Collor começou nas páginas da revista Veja e os principais escândalos do governo FHC foram inicialmente noticiados pela Folha de S.Paulo.

Talvez o desdobramento mais importante da matéria de capa da revista CartaCapital (19/3/2004) seja a ausência de desdobramentos. O silêncio gritante do resto da mídia realça ainda mais as palavras do agente Carlos Costa, quando define a ação dos serviços secretos sobre os seus diletos profissionais de redação: ‘Influenciar é mudar o pensamento contrário aos nossos interesses’.

Talvez isso nos ajude a entender o arrazoado de certos colunistas em defesa da Alca, talvez compreendamos com mais facilidade os princípios que norteiam articulistas zelosos na defesa da política externa americana. Quem sabe esteja desnudada a política editorial de várias publicações.

Alguém pode retrucar que a argumentação desenvolvida no parágrafo acima é simplificadora. Certamente. Mas, enquanto os ‘influenciáveis’ não romperem seu pacto de silêncio, qualquer teoria conspiratória terá relevância analítica. Ou repetindo a sabedoria do senso comum: ‘Quem cala, consente’. Just do it.

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Professor titular das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA)