O futebol brasileiro faz brotar mistérios. Penso na apresentadora do Jornal Nacional da TV Globo, Fátima Bernardes. Por que ela sempre abre um largo sorriso quando trata de futebol? Talvez para muitos seja normal: futebol é alegria. Mas eu indago, como jornalista: para este tipo de notícias a direção da empresa, a família Marinho, sei lá, liberam o sorriso de Fátima? Talvez sejam mais cruéis ainda. Talvez seja uma ordem: ‘Dona Fátima, toda vez que falar de futebol a senhora é obrigada a sorrir.’ E, boa funcionária, ela cumpriria as ordens do patrão. Sempre.
Essa constatação, aviso ao leitor, não é um lide deste artigo. Não sou homem de lides. Ocorre que vejo neste sorriso de Fátima um símbolo e, portanto, um resumo, do jornalismo esportivo brasileiro. Ele seria uma continuidade do Zorra total, ou do Casseta & planeta. O que me levaria à constatação: no Brasil não existe jornalismo esportivo sério. Mas como generalizar é cometer injustiças, prefiro me ater ao que acontece na segunda maior rede de emissoras do país (a primeira é da Igreja Católica). Enfim, a Globo. Sempre ela. Desta vez, na cobertura da Copa do Mundo de futebol na África do Sul que, vou logo avisando, não acabou. Ela agora se transfere para o Brasil, marcada para 2014, mas que já começou.
É do jornalismo esportivo que trato agora.
O que mais assombra nesse tipo de jornalismo exibido na TV Globo é exatamente a falta de jornalismo. As matérias não são matérias jornalísticas, mas quadros de humor. Não por acaso, nos intervalos e ao final dos jogos, reuniam-se ex-jogadores, jogadores, celebridades e… humoristas. O humorista estava lá para alimentar o riso, contar uma piada, descobrir piadas nos jogos – isto é, fazer o que sempre fez. As celebridades também estavam lá para contar piadas. Ou se tornaram piadas. Estavam ali porque fazem sucesso na novela da sete ou das oito (como é tudo a mesma coisa, tanto faz); porque fazem sucesso cantando música (o que não quer dizer que saibam cantar); coisas do gênero.
Uma virtude rara nos jornalistas: humildade
Quanto às matérias, salvo aquelas tipo ‘repórter-turista que cai de para-quedas em zoológico’ (tudo é novo, estranho e exótico), a grande maioria era para fazer rir. Debochava-se de tudo. Tudo era uma gracinha. Êpa!, corrija-se a minha generalização. A bem da verdade, alguns repórteres mostraram em boas reportagens um pouco da difícil realidade dos habitantes da África do Sul.
Telespectadores mais exigentes, porém, indagavam-se quando apareceria o jornalismo. Foram tantas as piadas dos repórteres, as brincadeirinhas, os deboches sobre o lugar, a região, os costumes da população, que o jornalismo, quando apareceu – muito raramente –, foi ocultado pela piada seguinte. O resultado: quem assistiu a Copa pela TV Globo ou pela TV Bandeirantes, para citar uma a mais, ficou sem ter uma visão mais clara do país em que ela ocorria e, principalmente, do próprio torneio.
Quando se fala do esporte da Globo é preciso tratar do fenômeno Galvão Bueno. A Globo vai ter que repensar esse locutor-comentarista disposto a provar ao mundo que sabe de tudo sobre futebol, embora a cada minuto de partida prove exatamente o contrário. Reconheçamos, porém, que Galvão Bueno cabe bem nesse jornalismo clown. Quando ele ‘entrevistou’ a avó de Kaká, por exemplo, a gente não sabia de se ria da pauta ou das perguntas ‘inteligentes’ que Galvão fazia à senhora.
Até parece que o jornalismo esportivo da Globo, nessa busca da piada, faz o impossível para ser medíocre. (O trágico é que as demais emissoras se esforçam em imitar a Globo.) Com esse ‘jornalismo’, o emprego de Galvão Bueno está garantido. Não por acaso, durante a Copa surgiu um movimento internacional contra o comentarista – o ‘Cala boca, Galvão’ – que repercutiu até na capa da ‘revista’ Veja. Porque a Veja, essa ‘revista’ que sempre descobre no PT e no governo Lula as causas de todos os males do mundo, abriu guerra com a Globo – é coisa que só os negócios explicam. O extraordinário no caso Galvão Bueno é que a TV Globo tem bons locutores. Por exemplo, Cleber Machado. Ele comete falhas, gafes, erros, porque quem faz ao vivo está sujeito a isso, mas sabe a diferença entre o locutor e o comentarista. E tem uma virtude rara nos jornalistas de hoje: humildade.
Quando o super-Dunga disse não
A cobertura da Copa na Globo começou pelo fim. Quando Dunga anunciou os convocados e, com seus olhos irados, deixou claro quem era o dono do pedaço, a Globo teve que engolir o timinho medíocre que o Brasil levava para Copa. Uma guerra foi anunciada ali e poucos perceberam. E o jornalismo se calou. Embasado em argumentos de tudo que é livro de auto-ajuda, Dunga recitou sua ladainha arrogante, mostrou que seu dicionário era diferente, deixou claro que a história não é a história. Ele era o poder. E danou-se a falar bobagens: disse que, como não vivera o apartheid na África do Sul, não sabia o que era apartheid; como não vivera a ditadura no Brasil, e tampouco a ditadura, não podia falar sobre isso; como não vivera o tempo da escravidão, não podia falar sobre escravidão. O presente era ele, o que ele via e ouvia. O mundo não existia sem ele; o tempo não existia fora dele. Nenhum jornalista ousou, ali, enfrentá-lo e dizer que aquilo era bobagem e burrice ao mesmo tempo. Dunga destilava ódio contra a imprensa – sem perceber que boa parte dela queria apenas que ele sorrisse, contasse uma piada, brincasse, enfim. Dunga se vingava; Dunga não perdoa. Aqueles que, no passado, disseram que Dunga era jogador medíocre agora recebiam sua ira.
A Copa começou e a Globo mostrava aquele monte de inutilidades informativas: as torcidas berrando coisas inúteis, as vuvuzelas, as opiniões inúteis de celebridades, o repórter Marcos Uchôa (talvez a mando do Departamento de Estado da Globo) manifestando sua ira ideológica contra a Coréia do Sul etc. Seguia o mundo nessa paz de superfície até o dia em que Dunga resolveu fazer treinos sem imprensa. Inclusive a Globo. Acostumada com os privilégios do poder, a emissora da família Marinho tomou um susto quando foi barrada no baile. Esperneou. E parou de fazer piadinhas. Surgiu um ‘editorial’, lido no meio do Fantástico por Mateus Schmidt.
Dunga não se deu por satisfeito. Havia um contrato da TV Globo com a CBF garantindo três entrevistas exclusivas, a critério da emissora a escolha dos entrevistados. Dunga foi um dos escolhidos, mas, por conta das rusgas antigas e desse editorial criticando o acesso da Globo aos treinos da seleção, ele – que não deleta o passado – se recusou a falar. A Globo reclamou para Ricardo Teixeira, que reclamou de Dunga, mas o técnico não abriu mão. Foi, provavelmente, a primeira vez no mundo esportivo em que a Globo foi questionada em seu poder. Dunga, o super-Dunga, disse não.
Uma morte anunciada
Por alguns momentos, Dunga virou herói. Muitos sonhadores chegaram a ver em Dunga um defensor da democracia da comunicação. Não perceberam que estavam diante de um homem arrogante que – leitor de livros de auto-ajuda – decidira mostrar o poder imenso que tinha nas mãos. Ele sabia que ninguém ousaria tirar Dunga da Copa, mesmo com ele enfrentando a fúria dos anunciantes e a TV Globo, o que dá no mesmo. Por um momento, Dunga se achou capaz de fazer história com duas vitórias: venceria a Globo e ganharia a Copa – voltaria como herói. Ocorre que esse herói de papel, naquele momento, poderia enfrentar a Globo, tinha poder para isso, mas não tinha time para ganhar a Copa. Na verdade, ao seu time pequeno faltavam jogadores e um bom técnico.
No que se refere ao futebol, Dunga é medíocre – jogando ou dirigindo um time. É o técnico que só conhece um jeito de jogar: retranca com contra-ataques. Ganhou alguns jogos dessa forma e usou isso como trunfo no seu discurso. Esse tipo de jogo medíocre predominou nessa Copa medíocre. O time holandês, que era apenas um pouquinho melhor que o de Dunga, e mais violento e dramático, ganhou fácil do Brasil. Felizmente quem ganhou a Copa não foi um time medíocre. Fez-se justiça para o time espanhol, que jogou diferente disso. A Globo de Falcão e Galvão Bueno queria a Alemanha, mas a Alemanha era parecida com os demais. Quanto a Dunga, ninguém pode acusá-lo de propaganda enganosa. Ele sempre defendeu um futebol medíocre, defensivo, do tamanho do seu futebol e da sua cabeça, com 40 volantes brucutus no meio de campo e ninguém no ataque. Ninguém pode dizer que ficou frustrado com a apresentação do Brasil na Copa 2010: esta morte foi anunciada em crônica há muito tempo.
Até 2014, o jornalismo esportivo vai fazer jornalismo?
No mais, o melhor é a gente esquecer de tudo. Esquecer, por exemplo, essa campanha da Globo (e de boa parte da imprensa nacional) contra a Argentina e o seu maior ídolo, Diego Maradona. Regra geral, a imprensa e o jornalismo esportivo instigam o ódio contra os argentinos. Dizem: temos que ter ódio dos argentinos; temos que odiar Maradona. Cada aparição de Maradona mereceu uma piadinha de escárnio, de raiva, de desprezo. Esse ódio esteve (e está) presente em praticamente todas as emissoras. É fácil entender esse ódio ao nosso maior adversário no futebol: primeiro, é a Argentina, da América do Sul, portanto, coisa de pobre; segundo, é o medo de encarar um inimigo forte – ou seja, mesmo a gente ganhando várias vezes, essa turma treme quando se fala da Argentina.
Vamos esquecer essa Copa da Globo. Esquecer os vexames, as desinformações, as piadinhas. Vamos esquecer a presença de Ivete Sangalo na final da Copa do mundo cantando o seu axé-salsa desengonçado, brega, numa homenagem esquisita ao time espanhol. Talvez essa ‘homenagem’ tenha sido apenas mais um negócio da Globo com Ivete Sangalo e o pior da música baiana, o axé.
Este artigo, na verdade, é um alerta para quem aprecia futebol e para o jornalismo esportivo nacional. Afinal, na prática, a próxima Copa do Mundo vai ser aqui. A questão é: até 2014, o jornalismo esportivo vai continuar fazendo piadas e somente piadas, ou vai fazer jornalismo? Teremos apuração dos fatos? Teremos entrevistas com abordagens sérias? Ouviremos analistas sérios? A imprensa terá liberdade para dizer verdades, ou fará, mais uma vez, um jornalismo medroso, covarde, que não ousa, não descobre coisas porque ofende o departamento comercial da empresa?
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Mestrando em Comunicação pela Universidade de Brasília, autor de A Arte de pensar e fazer rádios comunitárias