Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O texto é um bolo para comer com café

Sempre me encantou saber que as coisas podem ter receitas e que cada uma delas pode ser um guia para a gente seguir na cozinha, na escrita dos textos jornalísticos ou na vida. Jamais esqueci os cadernos de receita de dona Joene, minha mãe. Como nunca fui lá um grande cozinheiro, acho que a melhor coisa que aprendi nesses cadernos foi a admirar o método das receitas.

Embora para cada cozinheiro o bolo vá resultar de um ou de outro jeito – como dizem os mestres-cuca, tudo depende muito ‘da mão’ de quem cozinha –, as receitas tendem sempre a conduzir a resultados satisfatórios.

Além disso, me encantava perceber que a confiança trazida pela experiência passava a dispensar a receita ali ao lado. Fosse na comida preparada por dona Joene, nos salgados da tia Lúcia, nos beijos-de-caboclo da dona Ângela ou nas compotas da dona Marly – cozinheiras talentosíssimas que marcaram meu paladar desde muito cedo –, cozinhar tornara-se quase um exercício do espírito. Quase uma ioga, quase uma levitação.

E essa leveza permite algumas ousadias que só quem tarimba competentemente com a dupla forno-fogão pode ter, como fazer bolos azuis ou brigadeiros com milho verde. Mas enfim, atrevimentos à parte, sempre é bom começar bolos e textos por receitas. E quanto mais simples elas forem, melhor.

Ingredientes, a razão de escrever

Leite, ovos, manteiga, açúcar e farinha de trigo. Normalmente são esses os ingredientes que não podem faltar para se fazer um bom bolo. Mas para se fazer um texto, especialmente um bom texto argumentativo, quais seriam os ingredientes indispensáveis?

Se para o bolo, os ingredientes vêm da natureza ou da mercearia, no texto, eles vêm da alma. Eu sempre digo que gosto de ler sobretudo porque gosto de escrever. E é verdade.

A leitura é a minha motivação, a minha enteléquia, a minha força motriz para fazer o que mais gosto: escrever. E quando falo de leitura não falo apenas de ler livros, jornais ou sites. Falo de ler a vida, de ler gente e de ler lugares. Ao observador atento, tudo termina sendo importante. Os ingredientes para um bom texto são as nossas sensações, as nossas subjetividades. Aquilo que somos e aprendemos a ser observando, olhando, ‘lendo’ a vida que passa por nós e o nós que passamos por ela.

Algumas pessoas tiram esses ingredientes sobretudo da política, da economia, das artes. Outras tiram-nos das pessoas, das dores, da fé (licidade), da vida. Não importa de onde vêm os ingredientes, o fato é que eles são a base de qualquer bolo. Digo: de qualquer texto.

Para fazer um texto, cada pessoa tem que descobrir qual é a sua fonte de ingredientes. Uma boa dica é se perguntar: o que, de fato, me interessa? Os ingredientes da sua razão de viver – e de escrever – estão nesse amálgama de coisas.

Artigos e perfis

Ingredientes em mãos, é hora de misturá-los. Mas não saia quebrando os ovos nem derramando o leite. Em primeiro lugar, trace um roteiro para o seu texto, estabeleça uma sequência lógica com começo, meio e fim. Elabore tudo isso como se fosse uma receita de bolo do que você quer escrever e siga essa receita. Comece anotando seu pressuposto, a afirmação inicial que motivou o seu interesse por escrever o texto. Depois, anote os argumentos – e, se for o caso, os contra-argumentos – do seu texto. Ou seja: os elementos que você vai utilizar para defender ou ponderar em relação ao seu pressuposto.

Em segundo lugar, comece a preencher esse roteiro com seu texto. Se for o caso, utilize autores para subsidiar seus pontos de vista. Procure dar atenção à clareza e à coerência do que escreve. Ser claro significa que as pessoas devem entender o que você quer dizer, ser coerente significa que o que você diz tem que ter lógica, sentido, e estar bem argumentado. Mas cuidado: seja claro sem ser primário, seja coerente sem ser óbvio.

Lembre-se que alguns textos tendem a ser mais objetivos. É o caso dos memorandos, dos relatórios e de algumas reportagens jornalísticas para páginas de Economia ou Política. Outros são mais livres. É o caso dos textos argumentativos e dos textos literários. No caso da imprensa, incluem-se aqui o jornalismo opinativo e o jornalismo literário. Os artigos e os perfis, por exemplo, permitem esse tipo de liberdade. E algumas vezes, felizmente, em nome da liberdade da linguagem, são quase uma libertinagem!

Depois de pronto o seu texto, volte a ler o material.

Café dá um toque de lucidez

Em terceiro lugar, recheie o seu texto com o seu estilo. Aqui é hora de colocar em prática o seu toque pessoal; características de escritor que você desenvolveu de forma peculiar, que você percebe que emergem de você. Estilo é personalidade! Mas lembre-se que esse recheio vai depender também, e muito, do objetivo do material. Alguns bolos têm recheios mais simples, como o noticiário econômico ou político. Outros têm recheios mais adocicados e caprichados, ao gosto de grande parte do jornalismo opinativo e literário.

O recheio é o que dá o toque de cada um ao bolo. Aí, até mesmo os cozinheiros mais iniciantes têm espaço para testar a sua criatividade. Às vezes até não se tem recheio no bolo, mas convenhamos: é o recheio que deixa, lá dentro do bolo, a surpresa, o toque de cada mestre-cuca. Há recheios que são apenas caldas de açúcar. Outros, podem ser chantilly ou cremes de chocolate. Você poderá utilizar metáforas para rechear um texto. Você pode falar sobre redação de textos, por exemplo, recheando-o com bolos. Entende?

Em quarto lugar, prepare a cobertura. Ela é a ‘cara’ final do bolo. No jornalismo, diríamos que se trata da edição do texto. É hora de titular, subtitular e, se for o caso, escolher fotos e legendas. Enfim, é hora de arrumar tudo, de dar ao texto o seu aspecto final.

Todo esse trabalho deverá obedecer aos critérios e às pretensões do cozinheiro. A cobertura poderá ser uma simples calda de açúcar ou uma irresistível e densa calda de chocolate coberta com displicentes granulados de brigadeiro. Assim, um texto mais objetivo terá um título e um subtítulo mais seco. Uma escrita mais livre e literária terá uma ‘cara’ mais jocosa ou criativa.

Novamente leia e releia o material. Faça ajustes, corte excessos! Assim como dona Joene faz, use a espátula e tire aquele monte de doce que escorre e mela a bandeja. Se ninguém estiver olhando, grude tudo nos dedos e lamba-os como se aquela displicência fosse um segredo só seu e, talvez, de um ou outro cúmplice que está por perto. No caso de dona Joene, geralmente eu e meus irmãos!

Pronto! Babe à vontade, delicie-se com a sua obra. Se você gostar e achar que tudo tem clareza e coerência, terá grandes chances de agradar seu leitor. Depois de servir, saboreie cada pedaço olhando nos olhos e na alma de cada um deles.

Ah, e não esqueça o café. Todo texto é um bolo para comer com café. Ele dá um toque de lucidez e aí você já começa a pensar em fazer novos bolos. Digo: novos textos!

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Jornalista, professor de Jornalismo e doutorando em Ciências da Comunicação na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo