Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O último crime contra o Jornal da Cidade

Há quase trinta anos, teve início a lenta destruição da memória do Jornal da Cidade, um “matutino” diário que tinha como carro chefe a coluna de Maria Nilce (1941-1989) e os artigos de análise política de Djalma Juarez Magalhães (1930-2008). Apesar de não primar muito pela qualidade gráfica, o jornal era bastante popular, certamente em função da maneira “irreverente” que a jornalista – vitimada num dos mais escabrosos crimes de mando perpetrados no Espírito Santo – escrevia, expondo e criticando figurões e figurinhas da dita “alta sociedade capixaba”.

O Jornal da Cidade começou sua trajetória em 1972 e esta haveria de durar vinte anos. Em suas páginas colaboraram inúmeros jornalistas, como Elimar Guimarães, Willis de Faria, Xerxes Gusmão Netto, Carmélia Maria de Souza, Amylton de Almeida, Rogério Medeiros, Cezar Viola, Geraldo Bulau, o fotógrafo Antonio Moreira, enfim, a lista é grande. Todos estes cronistas em intensa atividade naquele período histórico deixaram importantes impressões pessoais para o entendimento e o sutil retorno aos ares que se respirava naquela época. Infelizmente, hoje tudo isso está perdido.

A primeira parte do arquivo do Jornal da Cidade foi implodida em um atentado à bomba na madrugada do dia 13 de setembro de 1983. O crime foi investigado pela polícia federal e até hoje sua autoria permanece um mistério. A bomba de fabricação caseira demoliu a sala onde ficavam guardados os jornais antigos, a cozinha da casa, onde funcionava a redação do jornal, e uma parte do escritório de Djalma Juarez Magalhães. Como o atentado aconteceu por volta de duas da manhã, não houve vítimas, exceto um sabiá cuja gaiola ficava na cozinha e não resistiu aos ferimentos.

Sou contra qualquer tipo de violência”

A explosão foi bastante noticiada, sobretudo por sua violência, que rachou o asfalto em frente à casa onde funcionava a redação do jornal, na rua Graciano Neves, centro de Vitória, e estilhaçou vidros de janelas de casas do entorno e de prédios até o oitavo andar. Embora hoje possa parecer estranho, atentados do gênero não eram incomuns na época. Em 1981, a mesma coisa já tinha acontecido com o arquivo do jornal A Tribuna e, da mesma maneira, nada haveria de ser apurado pelas autoridades competentes.

Perplexo, o editor do Jornal da Cidade, Djalma Juarez Magalhães, disse não saber a quem imputar o atentado, mas não excluiu na ocasião o presidente do Banestes, Carlos Guilherme Lima, devido a atritos causados por críticas e denúncias feitas à sua administração. Na reportagem de A Gazeta, o escritor explica que “enviamos documentos para os serviços de segurança, tanto na esfera estadual quanto federal, onde damos ciência das tentativas de agressões que temos sido vítimas por parte dele”.

Muito antes de ser largamente denunciado como um dos principais integrantes do crime organizado capixaba, as declarações do então presidente do Banco do Estado do Espírito Santo – publicadas na mesma página de A Gazeta – soam como fina ironia: “Não conheço, nunca li esse jornal, tomei conhecimento de sua existência hoje pelo noticiário local, estou trabalhando com a preocupação de dar lucros ao Banestes. Sou contra qualquer tipo de violência, descarto meu envolvimento nesse atentado.”

“Megaempresário representava um risco à sociedade”

Afirmar que não conhecia o Jornal da Cidade e, especialmente, Maria Nilce, na Vitória daquela época era uma provocação muito maior do que dizer, como fez posteriormente, que a briga que havia com o banco era porque a jornalista estava tentando coagir o presidente a conceder anúncios e assinaturas para o jornal, coisa que alguns acreditam e afirmam até hoje.

Sem conseguir manter a pose por muito tempo, o “empresário” passou a alternar o discurso de funcionário padrão com agressão verbal: “Soube serem os proprietários do jornal gente vigarista e que poderia praticar esse vandalismo para tirar proveito próprio. Sou uma pessoa trabalhando para o Espírito Santo e tenho maiores afinidades com a situação econômico-financeira do Banestes. De bombas não entendo nada.”

Após mais de vinte anos, as autoridades federais chegaram à conclusão de que as pioneiras denúncias do Jornal da Cidade podiam mesmo ter um fundo de verdade. Basta ver o breve panorama fornecido pela reportagem abaixo publicada em 13 de dezembro de 2002 no site http://notícias.terra.com.br:

“A Justiça Federal determinou hoje o afastamento da diretoria do Banco do Estado do Espírito Santo. A decisão é para evitar o desaparecimento de provas ligadas ao processo do empresário Carlos Guilherme Lima, preso ontem em Vitória. Há suspeita de administração fraudulenta na direção do banco e desvio de dinheiro público em benefício do empresário. Acusado de vários crimes, como desvio e lavagem de dinheiro, fraude em licitações públicas, formação de quadrilha, desvio de recursos federais e ocultação de bens, entre outros, o megaempresário Carlos Guilherme Lima foi preso hoje pela missão especial que investiga as atividades do crime organizado no Espírito Santo. A prisão preventiva foi decretada pela Justiça federal por entender que, em liberdade, ele representava um sério risco à sociedade.”

“Infelizmente, não sei o que aconteceu”

Quando do assassinato de Maria Nilce, a redação do Jornal da Cidade funcionava numa loja na Avenida César Hilal e lá ficavam guardados “os jornais antigos”, como eram trivialmente chamados pelos próprios funcionários. O então invisível crime organizado era tido por “certos segmentos” como “invenção de algumas pessoas de esquerda” e nos tristes – política e socialmente falando – anos 90 seus principais atores reinariam absolutos, sendo apontado em investigações o ex-deputado José Carlos Gratz como principal figura pública, ainda que outros indivíduos fossem eventualmente citados como os verdadeiros comandantes.

Após a inevitável derrocada do Jornal da Cidade em 1992, todo o acervo de jornais que estava arquivado em sua redação foi doado à Biblioteca Pública Estadual. Nada mais natural que o principal repositório de informações do Estado cuidasse e zelasse pela preservação do periódico que, inclusive, era fonte de pistas para a investigação da morte de Maria Nilce. Afinal, em suas últimas colunas vinham sendo publicadas notas anunciando denúncias escabrosas contra poderosos antigos desafetos.

Numa decisão ainda nebulosa, tomada por alguém da própria biblioteca, em algum lugar entre o final de 2005 e o momento presente, o único acervo do Jornal da Cidade de que se tinha notícia foi “descartado”. A antiga diretora da instituição, Rita Cássia Maia, foi interpelada por meio de uma mensagem eletrônica encaminhada também para várias autoridades e jornalistas e não deu qualquer resposta. Explicado seria que a mesma fora exonerada naquele dia – algumas semanas antes – e, em seu silêncio, parece ter optado por deixar o abacaxi para a sucessora descascar.

Apesar de ser funcionária antiga da Biblioteca Estadual, a bibliotecária Nadia Alcure estava trabalhando há alguns anos na Faculdade de Música e quando voltou não conseguiu mais encontrar o acervo do Jornal da Cidade. A única coisa que disse poder afirmar a esta reportagem foi: “Eu não estava aqui. Infelizmente, não sei o que aconteceu”. Denise, a bibliotecária responsável pelo setor de Hemeroteca, que cuida da organização de periódicos e revistas, disse lembrar do acervo, mas que, por trabalhar no andar de cima, simplesmente não faz ideia de como pode ter desaparecido todo o Jornal da Cidade.

Uma charge imperdoável

É provável, mas não comprovado, que o “descarte” do acervo do jornal tenha acontecido durante o período de reforma da Biblioteca Pública Estadual, quando, em função de modernizações e mudanças no espaço, muita coisa foi jogada fora como velharia. Enquanto edições antigas do Diário Oficial foram acolhidas pelo DIO, outras, como de A Gazeta, foram microfilmadas, o que nos leva a perguntar: por que essa preocupação em preservar um jornal já bem documentado pela própria empresa e jogar no lixo coleções únicas?

Talvez não tenha nada a ver, mas pode ser que isso venha um pouco do desprezo urdido e muito bem difundido pelos inimigos de Maria Nilce por tudo o que dissesse respeito a seu trabalho e à sua pessoa. A jornalista, após sua morte, só foi lembrada na mídia pelas polêmicas e por seu covarde assassinato. Poucos foram os que ousaram vir a público para defender ou fornecer uma visão pelo menos imparcial da trajetória de Maria, como foi o caso de Carlos Benevides, Pedro Maia e Marcus Machado, entre outros. Para denegrir não dá pra citar aqui, a lista seria grande demais.

Algumas pessoas que a própria Maria considerava como “amigos”, estranhamente passaram a negar a ligação – talvez por medo, talvez por interesses financeiros – passando até a atacar publicamente a jornalista, difundindo a ideia – que persiste até hoje – de que Maria Nilce falava demais, morreu porque provocou, procurou. Criminalizando a vítima, denegrindo sua memória e humilhando seus familiares e verdadeiros amigos. Foi o caso da imperdoável charge feita por Milson Henriques e publicada em A Gazeta no dia 12 de julho de 1989, uma semana após o crime.

 

Uma justificativa plausível

Para quem não se lembra, Maria Nilce foi morta dentro de um ônibus tentando fugir de um dos dois pistoleiros que perpetraram sua morte na manhã de 5 de julho de 1989. Na charge, vemos uma mulher passando a roleta de um ônibus vestindo uma camiseta com várias frases que, como no caso do ex-presidente do Banestes, oscilavam entre “pacifistas” e simplesmente rancorosas, especialmente a última: “Cuidado! Tudo na vida é troco. Você recebe o que dá.”

Este texto tem o intuito de denunciar e divulgar publicamente mais um crime cometido contra o patrimônio histórico do Espírito Santo e de externar toda a indignação dos familiares de Maria Nilce e Djalma Juarez Magalhães e dos herdeiros de seus inúmeros colaboradores, muitos destes já falecidos, cujos textos diários agora sabemos perdidos para sempre. Seja lá o que aconteceu com o acervo do Jornal da Cidade – tenho agora poucas esperanças de voltar a ter notícias deste –, espero apenas obter um dia uma justificativa plausível por parte do secretário estadual da Cultura e da direção da Biblioteca Estadual do Estado do Espírito Santo.

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[Magalhães Juca é professor, Vitória/ES]