Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O verdadeiro espírito olímpico

Em 2000, eu era estagiária do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro. Inexperiente e ainda cheia de sonhos na profissão e na vida. Não que não os tenha hoje, mas o tempo nos torna mais racionais, menos crentes. Da menina do final do século 20, ficou o amor pelo esporte, a admiração pelos atletas e a frustração por não ser um deles. Era o ano das Olimpíadas de Sydney, de ficar a madrugada inteira acordada, acompanhando as competições, manter a disposição, a mente e o corpo despertos durante o resto do dia com a maratona de trabalho, faculdade, namorado, livros, vida social… Ah, naquela época, naquela idade era bem fácil, convenhamos!

Por falar em maratona, me lembrei da emoção que foi poder cobrir uma Olimpíada. Claro, como estagiária que era, não fui à Austrália (e nem depois que deixei de ser fui parar em uma Vila Olimpíca). Mas pude fazer reportagens bem bacanas. Apesar de quase nada experiente, me arrisco a dizer que produzi um dos melhores textos da minha vida naquela época. A chefe chegou com a seguinte pauta: fale sobre o espírito olímpico. Nossa, como fazer uma matéria sobre algo tão impalpável? Lembro que pesquisei, resgatei memórias e acho que fui muito feliz no resultado final.

Recentemente resolvi procurar a tal reportagem pela internet e, ao não encontrá-la, fui atrás de colegas que trabalharam comigo na época. Para minha tristeza, descobri que todo o arquivo passado do JB Online fora corrompido e perdido… Para sempre.

Redação de memória

Achei apenas este link, em que o Jakaré Online reproduz (e dá crédito!) o início do meu texto da época.

‘Maratona feminina dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, Estados Unidos, 1984. Ela entrou no Coliseu cambaleante, o corpo curvado e tombado para a esquerda. As pernas tortas pareciam que não iriam suportar o peso daquela atleta de 39 anos. Os braços mexiam lentamente, num compasso desordenado. A expressão no rosto era de dor, sofrimento e ansiedade. A mesma que se verificava nos rostos perplexos de cada um dos cerca de 80 mil espectadores que estavam presentes no estádio. E a suíça Gabrielle Andersen-Schleiss continuava no seu passo lento e sofrido. Apenas os últimos metros a separavam da linha de chegada, depois de percorrer outros 42 mil. Parecia impossível chegar lá. Médicos e auxiliares tentaram tirá-la da pista, mas, num esforço supremo, com todas as forças reunidas, ela repelia os gestos de salvamento. Queria vencer o seu limite. Exausta, desidratada, demorou mais de sete minutos para percorrer os últimos passos de seu destino. Sete minutos que pareciam horas para seus compatriotas que ligavam incessantemente para as redes de televisão para pedir que a tirassem da pista. Não podiam, Gaby queria chegar ao final. E conseguiu. A linha de chegada foi a fronteira para o colapso e depois para a História. A estréia da maratona feminina em Olimpíadas não escreveu o nome da campeã – a norte-americana Joan Benoit – nos anais das glórias olímpicas. Lá está registrado o de Gabrielle Andersen-Scheleiss, a 37ª colocada. A imagem do sofrimento e da perseverança da suíça continua sendo transmitida, mesmo depois de 20 anos. Ela demonstra a vontade de vencer os seus limites para representar o seu país. O verdadeiro espírito olímpico, que fica adormecido e acorda de quatro em quatro anos.’

Gente, confesso! Hoje, neste exato momento, estou chorando, emocionada, ao ler este texto e ver a imagem desta atleta. Eis o espírito olímpico.

Para ver e rever a cena, acesse o link do YouTube.

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P.S. – Quando escrevi o texto, o YouTube não existia. Fiz tudo de memória da cena, com o recurso apenas de fotos. Em 1984, nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, eu tinha cinco anos.

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Jornalista, Brasília, DF