Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O vírus da intolerância

Luiz Carlos Prestes (1898-1990) é reconhecido como um dos nomes emblemáticos da história brasileira. Participou do chamado Movimento Tenentista e lutou contra o governo de Artur Bernardes (1992 a 1926), que representava as elites de Minas Gerais e São Paulo. Seu nome ficou gravado na história do Brasil, sobretudo depois do êxito da chamada ‘Coluna Prestes’, que percorreu 17 estados sem que tivesse uma única derrota ao longo dos dois anos que atravessou o território brasileiro.

Outro personagem (quase) homônimo é Luiz Carlos Prates. Este é um comentarista de uma empresa de retransmissão da Rede Globo no estado de Santa Catarina (RBS TV). Mas a diferença entre os dois é simplesmente gritante. Se Prestes, o Cavaleiro da Esperança, como ficou conhecido, sempre dedicou sua vida (com erros e acertos) para construir uma sociedade mais justa, o outro, o comentarista Luiz Carlos Prates, não perde uma oportunidade para defender a desigualdade.

Para Prates, a boa sociedade, deve segregar os mais pobres não lhes concedendo direito ao crédito e impedindo-os de adquirirem um automóvel. Quem nunca leu um livro, afirma, não deve ter direito a consumir bens. O posicionamento do comentarista, de forma alguma se baseia na necessidade de construir uma sociedade mais ecológica, ou mais humana ou mais eficiente, por meio de infraestrutura de transporte coletivo.

Em um comentário no Jornal do Almoço da RBS TV, na terça-feira (16/11), o comentarista destila seu ódio contra os pobres (‘os miseráveis’, como são nomeados). O vídeo foi postado no blog Conversa Afiada, de Paulo Henrique Amorim.

Uma classe média frustrada e preconceituosa

Prates, contudo, comete inúmeros equívocos. Atribui os excessos do feriado aos homens mal-casados ou insatisfeitos com suas esposas, afirma que os problemas de trânsito são fruto de pessoas pobres que nunca leram um livro e atribui o excesso de carros à ampliação do crédito ao governo.

Se Prates representa algum interesse, certamente deve ser a de uma elite medrosa que tem horror à ascensão da classe pobre. Sempre satisfeita com a gigantesca disparidade entre pobres e ricos no Brasil, hoje tem espasmos de terror ao ver que o pobre ‘pode mais’.

Prates não representa os interesses da elite empresarial. Esta precisa que o povo e a classe média tenha crédito. Precisam vender carros, precisam vender apartamentos (as gaiolas a que Prates se refere) e precisa que as pessoas morram (para que também possam vender seus funerais). O que Prates representa? Ele representa uma classe média alta frustrada e preconceituosa. Tem medo dos pobres, sobretudo porque estes conseguem comprar uma ‘gaiola’ próxima ao seu bairro, possuem um carro e usam a mesma faixa da pista que antes era apenas de um pequeno grupo e, finalmente, saem para passear.

‘Desgraçados’ invadem a cidade

Prates não suporta o pobre. Tem ojeriza ao miserável. Quem mais mata ao volante não é o pobre que nunca leu, mas os jovens que tem acesso à escola. Talvez não tenham lido um livro no último ano, mas isso se aplica inclusive aos jovens da elite. Talvez ‘os miseráveis’ tenham problemas com suas esposas, mas problemas como este são problemas que transpassam as classes sociais. As classes médias e altas, povoadas por homens com mentalidade patriarcal, têm horror às mulheres independentes.

Finalmente, o crédito fácil representa uma forma de ampliar os meios de acesso ao povo aos bens que antes apenas faziam parte do universo dos ricos. Isso não o faz rico, mas permite que mais pessoas possam se sentir mais dignas. O consumo não é e nem deveria ser sinônimo de dignidade, mas de direito de atender às necessidades. A distorção da sociedade cria símbolos de status, a mesma sociedade que Prates tanto defende, a sociedade de hierarquias. Prates é contra o crédito fácil, pois assim ele se confunde com qualquer outro. ‘Os desgraçados’ estão invadindo a cidade e Prates se vê dissolvendo em meio ao povo. Isso, certamente, deve ser insuportável para quem defende a manutenção da desigualdade.

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Doutor em Sociologia, professor da Universidade Federal de Goiás