MACHADO POR PIZA
Antonio Carlos Secchin
‘Machado de Assis – Um gênio brasileiro, de Daniel Piza. Imprensa Oficial de São Paulo, 416 pgs. R$ 60
Costuma-se dizer que o desinteresse relativo à vida de Machado de Assis (1839-1908) é simetricamente proporcional ao interesse gerado por sua obra: enquanto a produção literária de Machado não cessa de ser mais e mais valorizada, sua biografia estamparia apenas o morno transcurso de um exemplar funcionário público, de um esposo fiel e devotado à dona Carolina, de um ser algo distante das questões políticas, e, juntando-se as duas pontas da existência, de alguém que, vencendo barreiras da origem étnica e de uma frágil constituição física, alçou-se ao posto de nosso escritor máximo, tornando-se também o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras.
A rigor não teria havido um Machado, mas ao menos dois, o ‘Machadinho’ impetuoso dos primeiros tempos e o homem comedido de depois – assim como a crítica, e o próprio autor, também divisaram duas fases em sua criação literária. De modo esquemático, diríamos que, quanto mais a obra se afirma (segunda fase), mais o homem se retrai, ou retrai-se, paradoxalmente, para revelar-se melhor através dela, que é, no fim das contas, o espaço que interessa para o encontro entre escritor e leitor, para além das peripécias que eventualmente tenham, ou não, apimentado a vida do artista. A confissão pessoal, direta, não era o seu forte, daí a epistolografia machadiana ser considerada o ramo ‘menor’ de seus escritos.
Discurso fluente e diretrizes bem delineadas
É relativamente vasta a bibliografia acerca do binômio ‘vida e obra’ de Machado. Para ficarmos em apenas três títulos, citemos o pioneiro ‘Machado de Assis’, de Lúcia Miguel-Pereira (1936), a contribuição de Jean-Michel Massa em ‘A juventude de Machado de Assis’ (1971) e os quatro volumes que compõem ‘Vida e obra de Machado de Assis’ (1981), de R. Magalhães Jr. A esse rol se acrescenta agora ‘Machado de Assis – Um gênio brasileiro’, de Daniel Piza.
Trata-se de um estudo que, sem agregar muitas informações ao que já se conhecia sobre o autor, tem o mérito de sistematizá-las num discurso fluente e com diretrizes bem delineadas, entrelaçando de modo consistente os elementos sociais externos e seu reflexo, transfigurado, no texto machadiano. Abastecendo-se sobretudo no opulento, embora atomizado, manancial de dados registrado por R.Magalhães Jr., Piza opera um bom recorte seletivo no material já existente, a partir dele moldando uma narrativa mais orgânica, a par de um tom crítico-interpretativo de que se pode até divergir, mas que logra minimizar (apesar do título!) a aura hagiográfica que ronda os discursos biográfico-laudatórios tecidos em torno dos ‘grandes vultos da pátria’.
O ‘Machadinho’ da primeira fase ocupa cinco dos 13 capítulos da obra. Após uma infância enevoada, que a cautela dos biógrafos preenche com reticenciosos ‘deve’, ‘talvez’, ‘é possível’, Joaquim Maria estreou na imprensa com um poema, em 1854. Até quase o fim da vida colaboraria em inúmeros jornais e revistas. No período que se estende até cerca de 1880, as intervenções do escritor foram, de fato, mais incisivas no que respeitava os grandes temas políticos e sociais do país – a escravatura, a Guerra do Paraguai, os embates entre liberais e conservadores.
Batalha pela afirmação como homem de letras
Já nessa denominada ‘primeira fase’ fica patente que nada em Machado se fez por atropelo: parecia guiar-lhe uma obstinada, embora discreta, batalha pela sua própria afirmação como respeitável e polivalente homem de letras, aspiração que se materializou no exercício das mais diversas modalidades de escrita: a poesia, a crítica teatral e literária, a dramaturgia, a crônica, a ficção. Contrariamente às lendas que sublinhariam os aspectos dramáticos e árduos de tal caminhada, Piza revela que, mesmo sem alçar-se à unanimidade de que hoje parece desfrutar, Machado sempre foi contemplado por uma favorável recepção crítica – leia-se, a propósito, um recente e valioso estudo de Ubiratan Machado (‘Machado de Assis – Roteiro da consagração’, 2003), que fornece ampla documentação sobre o assunto.
Na matéria propriamente literária de sua pesquisa, Piza dá relevo a importantes textos, algo esquecidos, da crônica machadiana, tal como o publicado na ‘Gazeta de Notícias’ menos de uma semana após a abolição da escravatura. São bem fundamentadas as observações do biógrafo sobre o deslocamento de Machado simultaneamente frente às estéticas do romantismo e do naturalismo. Outras vezes, o discurso de Piza arrisca-se a estender-se além do necessário, sobretudo quando parafraseia, entremeado a alguns comentários, o enredo de romances já por demais conhecidos, como sucede nas nove páginas concedidas às ‘Memórias póstumas de Brás Cubas’.
O livro apresenta pertinente e variado material iconográfico, tanto do autor quanto da época. A bibliografia, vasta e atualizada, incorpora indistintamente tanto as boas edições machadianas quanto as menos indicadas – os volumes da W.M. Jackson Editores, por exemplo. Alguns poucos erros factuais, facilmente corrigíveis, não comprometem a qualidade do conjunto. Assim, ‘Dom Casmurro’ ora surge como publicado em 1900 (p.24), ora é datado (corretamente) de 1899 (p.317). ‘O Teatro’, de 1863, é referido como primeiro livro de Machado, quando, já em 1861, viera a lume a peça ‘Desencantos’. Piza registra a ausência, entre os fundadores da ABL, da figura exponencial de Cruz e Sousa, o que é exato. Mas conviria acrescentar, para que não se pensasse tratar de uma discriminação particular contra o poeta, que todos os escritores simbolistas foram alijados da formação inicial da Academia, proscritos pelo então hegemônico e vitorioso grupo dos parnasianos.
Tempo próprio dos grandes criadores e criaturas
Num relato linearmente cronológico, talvez cause surpresa que Piza haja subvertido a temporalidade exatamente no primeiro capítulo do livro, ao apresentar não o nascimento, mas a morte de Machado. A inversão parece expressar uma homenagem prévia de Piza ao escritor das memórias póstumas de Brás, cuja autobiografia igualmente se iniciava com a descrição do falecimento de um narrador. A diferença é que, com Brás Cubas, estamos diante de um defunto-autor, falante, enquanto, com Piza, defrontamo-nos com um autor defunto, silente. Mas ambos, Machado e Brás Cubas, representam, afinal, uma vitória contra a morte ao serem, sem cessar, convocados à vida, por meio de um presente perpétuo de leituras que os revivem a cada dia, inexauríveis, num tempo para além do tempo, próprio dos grandes criadores e criaturas da arte literária.
ANTONIO CARLOS SECCHIN é poeta, ensaísta e membro da ABL’
DICAS DE LEITURA
O Globo
Para dar adeus ao escapismo de fim de ano
‘Amaioria dos seres humanos dedica o fim do ano, justificadamente, ao escapismo. É hora de relaxar, ir à praia com um livro leve em todos os sentidos, para não cansar os pulsos ou a mente e começar a deixar o ano atribulado para o passado. Aos valentes, contudo, o fim de ano das editoras reserva ótimos títulos, seja destrinchando o escândalo do governo ou a vida de figuras muito ou nada admiráveis. Para quem quer leveza com alguma dose de realidade, há opções mais digestivas.
LULA: Se no Brasil o ano pudesse ser resumido a uma manchete, ela teria de ser sobre escândalo do PT que dominou a imprensa durante os últimos meses e domina agora as vitrines das livrarias. Quase toda editora tem uma resposta mais ou menos bem articulada para a maior dor de cabeça nacional. Quem quiser reaver o fio da meada perdido tem em Augusto Nunes e seu ‘A esperança estilhaçada’ (Planeta, R$ 24,90) um bom escudeiro desde o escândalo dos Correios, em maio, até hoje. Didático, tem um capítulo para cada lance principal. Uma lupa especialmente atenta às CPIs – e seus bastidores encardidos – está à disposição no completo ‘Memorial do escândalo’ (Geração Editorial, R$ 32), de Gerson Camarotti e Bernardo de la Peña, da sucursal do GLOBO em Brasília. Da mesma editora, um tijolo contextualiza a crise dentro da história do PT, antevendo em pequenos fatos aparentemente insignificantes a derrocada de hoje: ‘Já vi esse filme’, de Luiz Maklouf Carvalho (R$ 59) reúne reportagens diversas do jornalista tendo o PT como assunto e alvo. Para um ponto de vista mais analítico e acadêmico, ‘Por dentro do governo Lula’ (Futura, R$ 29,90), da cientista política Lucia Hippolito, analisa todas as filigranas e implicações do atoleiro.
JORNALISMO: Enquanto os livros a respeito de Lula trazem um registro a quente de nossos tempos, o leitor brasileiro está cada vez mais habituado a apreciar reportagens que perduram a despeito da morte de seus assuntos, personagens e autores. A Companhia das Letras continua publicando clássicos do Jornalismo Literário em sua coleção de mesmo nome. O último lançamento é o genial ‘Filme’, de Lillian Ross (R$ 47), oficialmente o primeiro romance de não-ficção já escrito, onde a jornalista de ‘New Yorker’ acompanha o cineasta John Ford durante todo o processo de filmagem do clássico ‘Glória de um covarde’. Outra coleção, essa dedicada ao jornalismo de guerra, é a aposta da Objetiva, que lançou há poucas semanas mais um volume, o denso ‘Despachos do front’ (R$ 39,90) de Michael Herr, relato em primeiríssima pessoa sobre a guerra do Vietnã. O país também é um dos temas do lúcido ‘Antonio Callado, repórter’ (Agir, R$ 39,90), que reúne duas reportagens do mestre. Na primeira, Callado mapeia o papel das ligas camponesas e do coronelismo que parecia às portas da morte no Nordeste. Na segunda, visita o norte do Vietnã e narra – sem qualquer pretensão de neutralidade – a luta dos vietnamitas para sobreviver à catástrofe. Completando o pacote, ‘O homem X’, de Bruno Paes Manso (Record, R$ 45,90), mistura reportagem, estatísticas e pesquisa sociológica numa radiografia fina da violência em São Paulo.
HISTÓRIA: Se o jornalismo literário se preocupa especialmente com o tom do texto, para outros o objetivo é popularizar a História ou revelar detalhes pouco conhecidos do passado. ‘O demônio na cidade branca’ (Record, R$ 62,90), de Erik Larson, jornalista com passagens pela ‘Harper’s’, ‘New Yorker’ e ‘Atlantic Monthly’, faz um relato em tintas fortes de dois personagens reais na Chicago da virada do século XX. Um é construtor, o sonho americano encarnado; seu oposto, o primeiro serial killer do país. Igualmente audacioso é ‘1930’ (Record, R$ 69,90), onde o jornalista Domingos Meirelles apresenta o Brasil nas vésperas da Revolução de 30, logo após a dissolução da coluna Prestes, tema de seu livro anterior, ‘As noites das grandes fogueiras’, ganhador do Jabuti de reportagem em 1996.
BIOGRAFIA: Há biografados para todos os gostos. Na ordem cronológica, a seleta começa por ‘Cervantes’, de Jean Canavaggio (Editora 34, R$ 49), obra que culmina mais de dois séculos de estudos sobre o homem que pariu o Quixote. Canavaggio, a maior autoridade mundial em Cervantes, investiga tudo, desde sua participação na batalha de Lepanto, onde perdeu uma mão, até seus cinco anos encarcerado em Argel, passando pelos rumores de que seria judeu, simpático aos árabes ou, ainda, homossexual. Já ‘Hitler’, de Joachin Fest (Nova Fronteira, R$ 52 o primeiro volume) vai de encontro à tendência da academia, vigente nas últimas décadas, que diminui o papel do austríaco e aumenta o das circunstâncias históricas para explicar o nazismo. Fest acredita no papel decisivo do homem na História e o personagem da obra é sua maior prova. Um outro exemplo de como o indivíduo pode moldar os acontecimentos é dado por Wagner William em seu ‘O soldado absoluto’ (Record, R$ 60,90), que retraça a vida do marechal Henrique Lott. O então general aparece aqui como um legalista compenetrado, que manteve a coesão do país ainda em choque com o suicídio de Vargas. De acordo com William, Lott ‘retardou’ em nove anos a chegada da ditadura ao garantir a posse de JK e candidatar-se em seguida como oposição a Jânio Quadros. Num tom absolutamente diferente, ‘Saindo da Sarjeta’ (Zahar, R$ 39,50) traz a história do genial baixista Charles Mingus contada pelo próprio. Uma vida conturbada, seja por seu ativismo nos direitos civis como por seus problemas psiquiátricos, tratados aqui com franqueza desconcertante.
QUASE TUDO: Possivelmente um dos mais palatáveis lançamentos do ano no terreno da não-ficção é ‘Breve história de quase tudo’, de Bil Bryson (Companhia das Letras, R$ 54). Ao constatar sua ignorância a respeito de como funciona o universo, Bryson passou três anos, em suas próprias palavras, ‘à procura de especialistas bonzinhos e pacientes dispostos a responder a um monte de perguntas cretinas’. O autor, nada próximo do universo da ciência ou mesmo da divulgação científica, leva à frente a idéia do tudo-que-você-sempre-quis-saber com mão leve e muito humor. As belas artes recebem tratamento similar em ‘O roubo da Monalisa’ (Campus/Elsevier, R$ 39), do psicanalista Darian Leader. O desaparecimento do famoso quadro de Da Vinci do Louvre, em 1911 – que levou 24 horas para ser notado! – dá início a uma reflexão curiosa sobre como vemos a arte hoje, porque continuamos a fazê-la e porque atribuímos a ela tanto valor.
PODER: Num registro sério, vituperativo até, a Bertrand Brasil oferece o presente perfeito para um Natal de esquerda: ‘Para entender o poder’, de Noam Chomsky (R$ 59). Nele, o intelectual americano investe contra os EUA, o complexo econômico-militar, a ONU e a mídia numa seleta de textos subtitulada ‘o melhor de’. Nada mais apropriado para quem foi eleito o intelectual mais popular do mundo, numa pesquisa feita pelas revistas ‘Prospect’ e ‘Foreign Policy’. No canto oposto do ringue político, mas igualmente influente, temos o colunista conservador do ‘New York Times’, Thomas Friedman, e seu ‘O mundo é plano’ (Objetiva, R$ 57,90). Nele, Friedman discursa sobre uma nova ordem político-econômica mundial que estaria em gestação nesse exato momento, onde China e Índia passam a competir de igual para igual com os EUA e a apoiar a globalização incentivadas pelo crescimento vertiginoso de suas classes médias. Friedman chega a se perguntar em certo momento se a mudança não seria mais importante que os ataques de 11 de Setembro.
SUFRÁGIO: Menos afeitos a fogos de artifício e polêmicas, dois trabalhos iluminam os meandros da política com rigor e ponderação. O primeiro é ‘O sufrágio universal e a invenção democrática’, coleção de artigos reunidos pela historiadora Letícia Bicalho Canêdo (Estação Liberdade, R$ 59) que mapeia a história do voto e o impacto de sua expansão a todas as classes. Já ‘Reflexões im-pertinentes’ (Bom Texto, R$ 39), reúne artigos da historiadora e professora da UFF Virgínia Pontes publicados em diversos meios. A primeira parte aborda questões mais amplas, ligadas ‘aos desdobramentos do capitalismo contemporâneo’, enquanto a segunda se debruça sobre questões exclusivamente brasileiras que vão desde os dilemas da produção acadêmica e cultural às transformações partidárias recentes, com especial atenção ao PT.
MATRIZ INDÍGENA: Fecha o pacote uma das primeiras edições no Brasil do pensamento original do peruano José Carlos Mariátegui. Em ‘Por um socialismo indo-americano’ (UFRJ, R$ 42), uma antologia de seus textos organizada por Michael Löwy, o leitor tem uma boa introdução da obra do homem que influenciou o pensamento, entre outros, do jovem Che Guevara, mas que permanece relevante hoje, com sua visão de um regime que seja, sim, marxista, mas leve em conta as singularidades das sociedades onde é aplicado, no que se aproxima de Gramsci e Lukáks. Para o peruano, a matriz indígena, em oposição à latina, importada da Europa, deveria ser um fator preponderante no pensamento marxista local – algo que explica sua influência no pensamento de líderes do continente como o presidente venezuelano Hugo Chávez e o líder cocaleiro Evo Morales, favorito nas eleições presidenciais de amanhã na Bolívia.’
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