Ao mesmo tempo em que Le Monde faz significativas reticências, círculos ultracatólicos de Paris se preparam para receber a visita do papa Bento 16 nos dias 12 e 13 de setembro próximo. A Igreja católica de Paris já distribui os folhetos de convite aos fiéis, com indicações sobre como participar dos eventos, organizados como um grande espetáculo público da fé. Papamóvel, telas gigantescas de TV, alameda de luzes, vigílias musicais e outros recursos do show business se anunciam como complementos às missas e orações.
Fica-se sabendo que, no dia 12, uma sexta-feira, o papa percorrerá em papamóvel o trajeto entre o Colégio dos Bernardinos e a Notre Dame de Paris, com acesso livre a esse itinerário, a fim de que todos possam saudar o Santo Padre. Será franqueada ao público a passagem pelos cais em torno da Notre Dame, na Rive Gauche: Quai de la Tournelle, Quai Montebello, Quai Saint-Michel.
Nesses pontos privilegiados do turismo parisiense, serão instaladas as telas gigantescas para que se possam acompanhar ao vivo as intervenções do papa, inclusive nas Vésperas, na Notre Dame. À saída da catedral, o papa falará aos jovens e abrirá uma vigília de preces, que se estenderá pela noite inteira. E dali até a Esplanada dos Inválidos, outra das atrações turísticas da cidade, haverá um caminho de luzes. No dia seguinte, preces e missa.
Desobediência ao Vaticano
Pode-se ver nisso tudo a mesma rotina das viagens do papa João Paulo II, que também demonstrava especial predileção, ou devoção, por efeitos de mídia. Mas as reticências bem acentuadas de um jornal ponderado como Le Monde têm por trás uma preocupação particular, que afeta diretamente a França: as boas graças do atual papa para com os círculos ultraconservadores ou integristas do catolicismo francês.
‘Integrismo’, para quem deseja clareza imediata, é o atraso falando, em todos os continentes, em nome de Deus. A palavra é hoje praticamente um sinônimo de ‘fundamentalismo’, embora esta seja mais antiga, já que se tornou conhecida em finais do século 19 como uma autodesignação positiva de grupos convencidos de que detinham a verdadeira interpretação dos Evangelhos. O integrista, desde o século 20, vive dessa mesma pretensão de exercer a ‘integridade’ da religião.
Seria divina essa pretensão? Grandes cabeças clericais e laicas acham que não, têm mesmo horror a ela. Vale citar o jesuíta Teilhard de Chardin, notável teólogo, que declarou guerra a essa linha de crença. Em 1928, numa carta a um amigo, ele afirma que sua tomada de posição é ‘de uma vez para sempre’ porque o integrismo excluiria do Reino de Deus as enormes ‘potencialidades de ordem social, moral, filosófica etc. que se agitam por toda parte, à nossa volta’. Na verdade, o próprio João Paulo II, papa que antecedeu o atual, parecia imbuído do mesmo santo horror aos integrismos de toda ordem. Tanto que, em 1984, excomungou um cardeal francês e toda a sua corte eclesial, famosos pelas posições integristas e pela desobediência ao Vaticano.
O perigo fundamentalista
Pois bem, Bento 16 vai chegar à França com firulas do Direito Canônico nas mãos, que traduzem o perdão aos integristas excomungados. Trata-se, na prática, de uma insólita reaproximação do Vaticano com as dimensões ultraconservadoras da Igreja. Daí, o incômodo da consciência liberal francesa, espelhada nas reticências à visita que transparecem nas páginas de Le Monde. Para esse tipo de consciência, todos os fundamentalismos do momento, sejam quais forem as religiões ou as seitas, são iguais em suas predicações de racismo e sexismo, num novo tipo de conjugação financeira e moral que leva ao recrutamento de jovens nas regiões mais pobres do mundo para fins obscuros, às vezes inconfessáveis. É o dízimo que o atraso mental faz pagar à consciência moderna e termina financiando os ‘batmóveis’ de todo tipo de ‘cavaleiro das trevas’.
O fenômeno do que poderíamos chamar de ‘ultra-rigorismo integrista’ extrapola, na verdade, o âmbito das crenças institucionalizadas e pode atingir até os comportamentos individuais de consumidores. Os desejáveis cuidados com a saúde, a alimentação, a ecologia etc. não estão isentos do perigo fundamentalista. É um fenômeno que retorna ciclicamente como aquilo que os neoplatônicos chamavam de eon, ou seja, uma forma transtemporal, recorrente. Vale a pena chamar a atenção de jornalistas e editores para as tentações dos exageros e abusos.
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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro