Esta coisa de anormal, normal, sadio ou doença, de socialmente desejável, ou condutas condenadas sempre foram discutíveis e alteradas através do tempo e do espaço. E a mídia muitas vezes se perde nestes espaços julgando o certo e o errado por força própria, a mais das vezes condenando o tema de saída, impedindo que apareçam divergências e opiniões diversas. A aparente defesa da liberdade de expressão e de pensamento é imediatamente jogada fora por uma ‘moral certa e infalível’, indiscutível para a mídia.
Existe, por exemplo, um discurso na mídia e na sociedade de que a vida privada das pessoas, seja ela quem for, é de cunho pessoal e que não deve ser noticiado e não deve interessar as pessoas. Um caso que acho sintomático é o do adultério de pessoas públicas, políticos, por assim dizer. Existe uma ilusão de que as pessoas que são adúlteras, que escondem da família segredos, que possuem condutas impróprias na vida privada, não a terão na vida pública, não trairão nos negócios ou os seus eleitores. Veja o caso do ex-marqueteiro do presidente Lula pego num clube privado de rinha de galo. Seria uma conduta isolada na vida, ou na verdade se trata de um modus operandi: ignorar a necessidade de honestidade a que todos devemos nos pautar na vida?
Parece-me estranho que se considere a fidelidade ou a vida dupla de um político sem interesse ou relevância para o leitor ou eleitor. De que a vida particular – ou seja, amantes, farras e freqüência a prostitutas – se restringe à sua vida pessoal, separada da sua vida pública. Enganar as pessoas que deveriam ser as mais importantes na sua vida, a esposa, pais e filhos, não são questões morais supostamente exigíveis das pessoas. A aparência é mais importante do que o real comportamento, pois, alegam muitos defensores desta conduta, as pessoas possuem duas vidas estanques e duas morais completamente separadas na vida. Para os entes queridos, são contumazes traidores; na vida pública, são pessoas de ilibada conduta independente da outra vida.
Comportamento esdrúxulo
Aos seus leitores, fãs e eleitores jamais trairiam ou fariam sofrer, apenas aos que amam. Se o indivíduo roubar os outros, tudo bem, desde que não faça a mim. Perdão justificável quando o caso é pessoal, mas imoral quando a traição foi com outros. Não me parece ser coerente esta visão e este tipo de comportamento daqueles que exigem da mídia silêncio sepulcral da vida de pessoas que se apresentam na sociedade.
Não está ela neste momento apregoando que as pessoas devem ter a liberdade de serem desonestos na vida privada e apenas ‘representarem’ uma vida honesta? Que se a pessoa não for descoberta, está tudo bem? Que na verdade, cumprir a palavra jurada, ser fiel ao voto dado, fazer aquilo que apregoa, é apenas uma fachada para a qual as pessoas não precisam fazer jus, que honestidade é algo que realmente não se precisa possuir? É claro que esta visão advém de uma moral dupla da sociedade. Uma coisa que se diz para os filhos seguirem, mas que não é para nós cumprirmos mesmo de verdade. Um pouco a moral da Lei de Gerson, aquela que apregoa que devemos levar vantagem em tudo. No caso, mentirmos e ocultarmos o real comportamento das pessoas. E me parece que a mídia é uma fiel educador neste sentido de moral dupla.
Será, por exemplo, que no caso do Ronaldinho, realmente as pessoas não devem ser informadas? Parece-me que o episódio foi muito educativo para a sociedade. Uma, que pessoas de nome e que precisam esconder o seu comportamento esdrúxulo não podem se arriscar a pegar pessoas em praça públicas. Podem ser alvo de furto, chantagem e acabarem envolvidos com traficantes de drogas. Cabe a cada um, se estiver informado, e para isto que existe a imprensa, medir a conveniência e a segurança deste tipo de comportamento.
O perdão vem logo
Li alguns comentários no OI de mulheres maravilhadas com o Ronaldinho, que o problema era apenas da sua noiva. Desde que se faça com os outros, tudo bem, pensam. Ora, em época de doenças venéreas, e de várias delas que podem ser fatais, como AIDS, hepatite B e C etc., sejam algo que esteja apenas no campo moral. Está também no campo da saúde e da proteção da vida das pessoas que estão sendo enganadas. Com que direito a mídia deveria esconder um fato destes que pode colocar a vida do seu leitor em risco? Cabe esconder este tipo de fato para ser conivente com um crime? Pode se alegar que muitos fazem assim. Mas não será na verdade uma conseqüência desta moral dupla implícita que as pessoas se comportam assim? Que o silêncio protege os comportamentos inadequados e de risco como se os mesmos não tivessem as mínimas conseqüências? Este, na verdade, é o motivo da existência de epidemia de AIDS em mulheres casadas e de uniões estáveis.
Parece que se trata do mesmo comportamento em relação à violência doméstica contra a mulher ou o problema de maridos, namorados e amantes matadores quando a relação acaba: se trata como se o assunto fosse apenas entre os dois. Uma relação apenas privada que não cabe molestar a vida da pessoa por não fazer parte do comportamento público. O fim geralmente é a morte da mulher.
Aprendemos também com o acontecido o comportamento da família da noiva, que de imediato perdoou o rico partido, torcendo que a moça faça o mesmo. Como se culpa aos outros, dinheiro faz a diferença nos diversos níveis de julgamento. Até no privado quando o faltoso é podre de rico. Mesmo que seja contumaz fazedor das suas, o perdão vem logo.
Condenação veemente
Penso que a censura não deve existir na cobertura da vida das pessoas. Seja na vida privada ou pública. Afinal, só pessoas que possuem comportamento não compatível com o que pregam e falam é que podem ser apanhadas em situações constrangedoras, seja fazendo contrato com um ecônomo do restaurante da Câmara, ou num carro em situação constrangedora, como Hugh Grant. Uma coisa é ir atrás para bisbilhotar, mas esconder fatos não faz sentido para proteger pessoas que não mantêm a dignidade com que deveriam se comportar.
Parece que o comportamento das pessoas favorece a filosofia do malandro. De que malandro é malandro, e mané é mane. E que é dever proteger o malandro nas suas malandragens em enganar os manés à sua volta. Um acordo tácito com eles.
No entanto, a imprensa tem sido omissa com o casal Nardoni, acusados de serem os autores de terem matado a menina Isabella jogando-a da janela. Estão faltando matérias veementes condenando o comportamento de um determinado público que parte para a justiça com as próprias mãos, ou de presos e encarcerados que se acham melhores e acima dos crimes praticados pelo casal muito antes dos mesmos serem julgados e condenados.
Não deve a mídia incentivar o comportamento histérico, mas certamente deve fazer o papel educativo, denunciando este comportamento como inadequado das pessoas sem paciência para esperar o transcorrer do tempo para o julgamento e para aceitarem o necessário e legal cumprimento da pena, se houver. E entre as penas previstas não faz parte a execração pública, apedrejamentos ou justiçamentos por parte de presos ou de quem possui direito a liberdade. Não só porque as coisas podem acabar trocadas – quem hoje é acusado prova a sua inocência, pois já ocorreram casos assim – mas porque não faz parte do tratamento civilizado hostilizar pessoas culpadas após cumprirem a pena.
A determinação da pena cabe à justiça, e não a populares raivosos que podem acabar cometendo crimes de igual selvageria da que ora se acusa o casal. Neste caso, para a imprensa e o jornalismo, informar apenas é pouco; mas deve ser ampliado para a condenação veemente deste tipo de comportamento exagerado, inadequado e muitas vezes hipócrita. Grande aparato da segurança que deveria estar se dedicando a milhares de outros casos acaba empregado para impedir que pessoas descontroladas e atrás do seu momento de selvageria cometam agressões do mesmo tipo. Pessoas que agem pelas emoções são do mesmo tipo dos que cometeram o assassinato injustificável da menina.
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Médico, Porto Alegre, RS