A cada novo texto que escreve sobre Educação, o economista Gustavo Ioschpe reafirma sua oposição a uma boa parcela dos professores do ensino público, profissionais por ele considerados (são palavras suas) ‘picaretas’, ‘cínicos’, ‘resignados’, ‘acomodados’ e ‘preguiçosos’.
O problema da falta de qualidade no ensino das escolas públicas residiria sobretudo nesse tipo de professor. E seriam invenções da mitologia esquerdista/sindicalista, bem como de pesquisadores ‘uspianos’, fantasmas como o baixo salário dos docentes, condições precárias de trabalho, baixo investimento, indisciplina dos alunos, desinteresse dos pais etc. Nada disso, porém (supondo-se que reais ou relevantes esses fantasmas fossem), nada disso impediria que professores competentes, honestos, arrojados, ativos e laboriosos dessem à educação brasileira um rosto finlandês ou coreano do sul.
Em um de seus artigos ou notas mais recentes, ‘Saúde dos médicos e professores‘, faz a analogia:
‘Se algum médico deixasse um paciente morrer por não saber administrar massagem cardíaca ou não conseguir debelar uma simples infecção com antibióticos, e tentasse justificar suas falhas se dizendo deprimido ou estressado, ou reclamando da falta de cooperação do paciente, provavelmente levaria uma porrada dos familiares do morto e uma reprimenda do seu hospital. Quando a nossa população tiver essa mesma indignação com os professores que não conseguem, por exemplo, alfabetizar (o SAEB de 2003 revelou que 55% dos alunos de 4ª série são praticamente analfabetos. 55%! Na 4ª série!!), e culpam sua saúde ou os próprios alunos pelo seu fracasso, tenho certeza que daríamos um salto gigantesco na qualidade do nosso ensino.’
Os mitos de sempre
O remédio, portanto, estaria em nos revoltarmos contra os professores picaretas, que se dizem estressados e, de fato, estariam apenas fingindo e enganando. Encaremos o analfabetismo como doença, para acompanhar a comparação. Bastaria que o aluno (visto como paciente) recebesse antibióticos (aulas) ou uma espécie de massagem ‘cerebral’. O professor (doutor do ‘saber’) teria toda a farmacopéia à disposição, todas as técnicas e tratamentos. Só não obtém resultados porque não quer.
A ‘porrada’ dos familiares do aluno e uma reprimenda da escola (vista como hospital) promoveriam ‘salto gigantesco’ na qualidade do ensino. No momento em que o professor preguiçoso sofresse forte pressão da sociedade e das Secretarias de Educação, acordaria para a sua responsabilidade, e começaria finalmente a trabalhar!
Para Ioschpe, também estão doentes os professores que discordam de sua posição. Esses professores não conseguem enxergar que o problema é um só: inúmeros docentes/médicos não sabem ensinar/curar os alunos/pacientes e, para ocultarem suas fraquezas, apontam como causas da situação calamitosa aqueles mitos de sempre: baixos salários, indisciplina dos alunos etc.
Aumento, só em ano eleitoral
Ora, ninguém (sobretudo quem é professor) nega que o trabalho docente exige preparação, esforço, competência, dedicação. Mas o melhor dos professores não consegue fazer milagres todos os dias (milagres eventuais, consegue!) só com o calor das mãos e o poder das palavras. É preciso, sim, que haja investimento na educação pública. Os melhores colégios particulares cuidam para que a escola seja bonita e limpa, fazem reformas, ampliações, compram material, computadores, livros, constroem quadras. O bom professor será melhor em melhores ambientes de trabalho.
Andreas Schleicher, diretor do Pisa (programa internacional de avaliação em que o Brasil tem obtido resultados humilhantes), disse em entrevista que ‘o que se vê hoje nas escolas é um ambiente que lembra a era industrial, no qual os trabalhadores das fábricas exercem tarefas sem análise crítica’ (Folha de S.Paulo, 22/5). Refere-se às escolas brasileiras. Tratados como operários do século 19, professores e alunos terão cada vez menos interesse em lecionar/estudar.
É corrente e recorrente, por exemplo, a elaboração e implantação de políticas educacionais sem que se consultem os principais sujeitos da história: os educadores! Faltam professores. Os professores faltam… O desinteresse geral… gera apatia entre os alunos, na melhor das hipóteses, e indisciplina, revolta, violência, na pior. Alunos indisciplinados tornam o ambiente ainda menos atraente. E não adianta dar porrada no professor ou no aluno, repreender este e aquele. Porradas e reprimendas continuam fazendo parte do ambiente industrial do século 19…
Ioschpe não perde a ocasião de afirmar, com estatísticas ou sem elas, que o professor brasileiro não enfrenta problemas salariais. Ainda bem que ele não é o ministro da Educação. Fernando Haddad, porém, já disse, em alto e bom som, o que Ioschpe nega: ‘O professor brasileiro ganha mal mesmo. O salário só aumenta em ano eleitoral’ (Sabatina da Folha de S.Paulo, em 25/3/2008).
A complexidade do tema
Em sua cruzada, Ioschpe quer salvar a educação brasileira denunciando os professores como verdadeiros culpados pelo fracasso escolar nacional, manifestado em números abundantes. O professor é o monstro. É médico porque pode tudo – bastaria receitar o remédio, recomendar o tratamento acertado – mas em monstro se transforma porque dele é a culpa maior pela falência da educação brasileira.
Mas precisamos de monstros? Faz um ano, Reinaldo Azevedo, colega de Ioschpe na Veja, atacava em outra direção. Escreveu em seu blog sobre políticas educacionais do estado de São Paulo, em particular a ‘progressão continuada’, empregando outra metáfora medicinal:
‘Irritante é que ninguém agora assuma a paternidade da besteira que foi feita. Neubauer age como o médico que, tendo errado no diagnóstico – e, pois, no remédio indicado –, manda dobrar a dose para ver se consegue curar a doença. O risco é só matar o doente. Acha que a ‘regressão continuada’ deu errado porque não foi bem implementada. Igual ao socialismo, hehe. O real sempre foi uma porcaria. Mas o ideal seria ótimo.
Chalita, seu sucessor, manteve a facilidade – a progressão continuada –, mesmo diante das evidências de que os resultados eram ruins, e resolveu agregar ao erro outros tantos, gastando uma fábula na tal ‘Escola da Família’. Mais uma conversa mole da ‘pedagorréia’ que viceja no Brasil. A suposição é a de que, se os pais forem jogar bola e declamar poesia na quadra da escola nos fins de semana, o ensino melhora. Não melhora’ (13/3/2008).
Contudo, mais do que culpados e vilões, deveríamos buscar tão-somente os responsáveis pelas falhas, pelos equívocos, pelas omissões e confusões. Sejam eles professores, governantes, pais ou alunos. Haverá professores a afastar? Que isto seja feito. Haverá famílias a serem convocadas a participar da formação de suas crianças e jovens? Sim, e os casos espinhosos, talvez por ora insolúveis, são inumeráveis. Haverá secretários de Educação que trabalham contra a educação e contra os professores? Que sejam substituídos. Haverá alunos com graves problemas de adaptação social, com problemas de saúde, com problemas de todos os tipos? Que sejam criados caminhos institucionais para ajudá-los.
Então, talvez descubramos como é fácil culpar os professores, ou qualquer outro ‘personagem’ dessa história. Difícil mesmo é compreender a complexidade do tema. Compreender e reunir a todos (não é este um slogan do MEC?), todos pela educação.
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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br