Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O que vem primeiro, a teoria ou a prática?

A matéria “Terra: uma história climática”, de Henrique Kugler, publicada na Ciência Hoje On-line, em 26/7/2013, informa que um dos destaques da 65ª Reunião Anual da SBPC (para detalhes, ver aqui) teria sido a palestra do geólogo alemão Ulrich Glasmacher. Já no primeiro parágrafo, o jornalista escreveu:

“O debate climático tem se tornado tão monótono – ou, mesmo, enfadonho – que o leitor pode até desanimar diante de mais um texto sobre a questão.”

Um exagero, diante do qual caberia esclarecer: no âmbito da esfera estritamente científica, o “debate climático” é uma questão até certo ponto em aberto, sem data ou hora previamente marcada para acabar. Na ausência de uma “conclusão definitiva”, o público e até mesmo os jornalistas que cobrem o assunto talvez se sintam meio perdidos, mas é assim mesmo que a arena científica funciona: altos e baixos, prós e contras. Quer dizer, o discurso que até ontem era a explicação “correta” para determinado fenômeno, pode muito bem ser descartado amanhã, sobretudo diante de novas evidências, em favor de uma explicação melhor.

A teoria do Big Bang

As explicações científicas – sempre provisórias – competem entre si pela preferência dos cientistas, um processo que é particularmente tumultuado no caso de disciplinas ou assuntos que ainda estão em algum estágio imaturo. De resto, embora algumas ideias possam estar mais bem amparadas do que outras, sempre nos defrontamos, em qualquer área científica, com novidades surpreendentes, tanto no plano teórico como em termos experimentais ou ao menos empíricos. Veja, por exemplo, o caso das novas evidências empíricas a favor da inflação, uma hipótese, digamos, associada à teoria do Big Bang.

De acordo com o artigo “Vestígios do Big Bang”, de Sofia Moutinho, publicado na Ciência Hoje On-line, no último dia 17/3, estaríamos não apenas diante de um grande achado, mas de um achado definitivo. Eis o que a jornalista escreveu (grifo meu):

“Um evento tão magnífico como o Big Bang, que teria dado origem à expansão do nosso universo, não poderia ter passado sem deixar vestígios. Há meio século, pesquisadores do mundo todo buscam, sem sucesso, provas de que esse fenômeno de 13,8 bilhões de anos realmente existiu. […]

Se for confirmado, o achado prova de vez a existência do Big Bang e do período de inflação do universo e pode até render um prêmio Nobel ao líder da equipe ou ao teórico norte-americano que em 1980 propôs a inflação, Alan Guth, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).”

O entusiasmo é compreensível, mas terminou comprometendo o rigor do texto. A pressa talvez também tenha atrapalhado. Afinal, naquele dia, assim como nos dias subsequentes, o assunto foi destaque na imprensa – ver, por exemplo, as matérias “Telescópio observa expansão violenta do Universo após o Big Bang”, de Salvador Nogueira, publicada na Folha de S. Paulo, em 17/3; “Cientistas americanos detectam pela primeira vez ecos diretos do Big Bang”, publicada no Correio Braziliense, em 17/3; e “Universo teve expansão gigante em uma fração de segundos”, de José Eduardo Mendonça, publicada no Brasil Post, em 19/3.

O que cabe ressaltar aqui é o seguinte: podemos dizer que os novos achados sustentam ou são condizentes com determinadas hipóteses. No entanto, não é correto afirmar que “o achado prova de vez” essa ou aquela hipótese.

Dias antes, curiosamente, repercutiu na imprensa mundial a revelação de outro achado: um manuscrito até então desconhecido de Albert Einstein (1879-1955) – ver, por exemplo, o artigo “Einstein lost theory uncovered”, de Davide Castelvecchi, publicado na revista científica Nature, em 24/2/2014. No referido manuscrito, datado de 1931, o renomado físico alemão retomava a sua antiga preferência em favor de um modelo de Universo estacionário, em oposição ao então incipiente modelo expansionista.

A origem do Universo

A concepção científica a respeito do Universo mudou muito ao longo dos últimos 100 anos. Até as primeiras décadas do século 20, por exemplo, a grande maioria dos cosmólogos – astrônomos, físicos, químicos e outros cientistas que estudam a estrutura, dinâmica e história do Cosmos – defendia a idéia de que o Universo era eterno (sem início e sem fim), estático e imutável. O próprio Einstein foi defensor durante anos do chamado modelo do Universo estacionário.

A ideia de um Universo imutável foi o ponto de vista dominante durante muitos anos. Uma visão alternativa pioneira foi proposta pelo matemático russo Alexander Friedmann (1888-1925), que no início da década de 1920 publicou um artigo tratando das implicações cosmológicas da teoria da relatividade geral de Einstein. Uma das possibilidades levantadas por ele levava à conclusão de que o Universo poderia estar se expandido. Pouco depois, na segunda metade da década de 1920, um modelo expansionista foi reinventado e desenvolvido de modo independente pelo físico e clérigo católico belga Georges Lemaître (1894-1966). De acordo com o assim chamado modelo do átomo primitivo, o Universo não seria eterno; ao contrário, teria uma idade finita (i.e., em vez de existido desde sempre, ele teria tido uma origem) e estaria se expandindo. A crença em um Cosmos eterno e estático ainda era a visão dominante e as ideias de Lemaître – a exemplo do que ocorreu com as ideias de Friedmann – foram combatidas, ou mesmo ridicularizadas (inclusive por Einstein), permanecendo na “lata de lixo” durante alguns anos.

Friedmann morreu prematuramente, não tendo recebido em vida o devido reconhecimento pelo seu trabalho. Lemaître, no entanto, viveu o suficiente para ver o nascimento da moderna cosmologia. Nesse processo, o trabalho deles forneceria as bases teóricas iniciais sobre as quais foi erguido o modelo de Universo adotado hoje em dia pela maioria dos estudiosos (para uma visão discordante, ver NOVELLO 2006). Eis um comentário a respeito (DAVIES 1999, p. 193):

“Para se reconhecer a importância do trabalho de Friedmann e Lemaître, é preciso saber algo sobre a relação entre as equações de uma teoria física e suas soluções. É comum na ciência um conjunto de equações possuir várias soluções, cada qual descrevendo uma realidade possível. Para escolher uma delas, você tem [de] decidir qual se enquadra melhor aos fatos ou apelar para algum critério adicional, como a coerência física ou a elegância. Friedmann e Lemaître partiram das equações de campo gravitacional de Einstein, presumiram que o [Universo] está uniformemente preenchido com matéria detentora de certas propriedades simples e produziram um grande conjunto de soluções, incluindo o modelo estático original de Einstein e uma variedade de modelos em expansão e contração. Cada solução representava um [Universo] possível consistente com a teoria geral da relatividade de Einstein. A questão veemente era: qual deles correspondia melhor à realidade?”

As primeiras evidências

As evidências empíricas a favor de um modelo expansionista começaram a surgir no fim da década de 1920. Entre 1929 e 1931, o astrônomo estadunidense Edwin Hubble (1889-1953) publicou dois artigos cujos resultados passaram a ser vistos (não tanto por ele, é bom ressaltar, mas por outros cientistas) como as primeiras evidências empíricas em favor das ideias de um Universo dinâmico, em expansão. Tendo analisado a natureza da luz emitida por estrelas distantes, Hubble descobriu – em colaboração com o astrônomo prático estadunidense Milton Humason (1891-1972) – que muitas galáxias estão se afastando de nós a uma velocidade V proporcional à sua distância R da Terra, de tal modo que V = H x R. Essa relação, comumente referida como lei de Hubble ou lei de Hubble-Humason, estabelece que o universo está se expandindo, com a constante H ditando a taxa de expansão.

Foi uma descoberta e tanto. Mesmo porque, naquela época, os especialistas ainda discutiam entre si sobre as dimensões de nossa própria galáxia, a Via Láctea. No início da década de 1920, por exemplo, as dimensões do Universo ainda eram desconhecidas, a ponto de haver sérios desacordos a respeito do tamanho e da abrangência daquilo que os astrônomos viam e fotografavam com os seus telescópios. Não se sabia sequer se os astros do céu noturno estavam todos abrigados dentro dos limites da Via Láctea ou se as fronteiras do Universo estariam situadas muito além de nossa galáxia. A opinião mais comum entre os cosmólogos era a de que todo o Universo observável estaria contido na Via Láctea, um equívoco que só começaria a ser corrigido ao longo daquela década (para detalhes e comentários em português, ver SINGH 2006).

Em seus primeiros anos, o modelo expansionista conviveu com um sério problema: a idade então estimada para o Universo (menos de 2 bilhões de anos) era inferior à idade estimada (cerca de 3 bilhões de anos ou mais) para alguns objetos físicos que estão dentro dele (e.g., estrelas, meteoros e a própria Terra) – para uma versão moderna desse problema, ver matéria “Cientistas da Nasa recalculam idade de estrela mais velha já descoberta”, publicada no portal G1, em 10/3/2013. Além de representar um dos pontos fracos da teoria, tratava-se, claro, de um disparate lógico. Nas palavras de Einstein, que já havia abandonado (ao menos publicamente) o modelo estacionário (SINGH 2006, p. 346-7):

“A idade do universo… deve certamente exceder a idade da crosta firme da Terra, como foi determinado pelos minerais radioativos. E, como a determinação da idade desses minerais é confiável em todos os aspectos, o [modelo do Big Bang] será desmentido se for descoberto que contradiz tais resultados. Nesse caso, eu não vejo nenhuma solução razoável.”

O problema de calibragem na escala de tempo só foi contornado na década de 1950, graças inicialmente ao trabalho do astrônomo alemão Walter Baade (1893-1960). Desde então, ajustes cada vez mais precisos terminaram fixando a origem do nosso Universo em algum momento há cerca de 13,8 bilhões de anos.

Coda

Transcorrido todo esse tempo, o Universo continua se expandindo, embora a taxa de expansão possa ter variado. De acordo com as chamadas hipóteses inflacionárias (para comentários e detalhes adicionais em português, ver BARROW 1995, GUTH 1997), a taxa de expansão teria sido incrivelmente elevada durante uma diminuta fração de segundo imediatamente após o Big Bang. O que acaba de ser divulgado seriam justamente as primeiras evidências empíricas a favor da ideia de que houve um período inflacionário na expansão.

Assim, do mesmo modo como as observações de Hubble e Humason deram sustentação às ideias de Friedmann e Lemaître, as observações astronômicas de agora (ver, por exemplo, o artigo “How astronomers saw gravitational waves from the Big Bang”, de Ron Cowen, publicado na revista científica Nature, em 17/3) representariam as primeiras evidências empíricas (preliminares, é bom que se diga) em favor dos modelos inflacionários. No fim das contas, não se trata de “provar de vez”, nem a inflação nem muito menos o próprio Big Bang.

De resto, penso que essa história toda serve também para ilustrar o papel essencial que a teoria desempenha no conhecimento cientifico. Afinal as primeiras hipóteses inflacionárias foram inicialmente formuladas – sobretudo pelos físicos Andrei Linde (nascido em 1948), russo, e Alan Guth (nascido em 1947), estadunidense – ainda por volta de 1980, bem antes, portanto, da obtenção de qualquer evidência empírica.

Referências

BARROW, J. D. 1995. A origem do Universo. Rio de Janeiro, Rocco.

DAVIES, P. 1999. O enigma do tempo. Rio de Janeiro, Ediouro.

GUTH, A. 1997. O universo inflacionário. Rio de Janeiro, Campus.

NOVELLO, M. 2006. O que é cosmologia? Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

SINGH, S. 2006. Big Bang. Rio de Janeiro, Record.

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Felipe A. P. L. Costa é biólogo e escritor, autor, entre outros, de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)