Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O sentido das idéias

Um dos temas mais difíceis no campo das comunicações é, sem dúvida, estabelecer as diferenças entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa. A primeira referida à liberdade individual e ao direito humano fundamental da palavra, da expressão. A segunda, à liberdade da ‘sociedade’ e/ou de empresas comerciais – a imprensa ou a mídia – de publicarem o conteúdo que consideram ‘informação jornalística’ e entretenimento.


Existe uma interdição não declarada ao tema cuja mera lembrança sempre provoca rotulações de autoritarismo e de retorno à censura. Mesmo levando-se em conta o trauma ainda recente do regime militar (1964-1985), esse é dos muitos paradoxos históricos dos liberais brasileiros que nem sempre praticam o que afirmam defender. O tema, certamente, é mais importante do que o eventual ‘efeito silenciador’ (Owen Fiss) exercido pela grande mídia. É necessário, portanto, propor o debate.


Não me refiro aqui às complexidades do debate jurídico. Restrito ao universo das leis, feito em linguagem excludente e, muitas vezes, ignorando a realidade social concreta na qual a questão se coloca, mesmo assim ele se constitui em referência inescapável. Também não me refiro ao debate externo ao liberalismo, sobretudo àquele fundado na crítica marxista clássica. Refiro-me, apenas, ao debate interno das premissas liberais, consolidadas e praticadas em sociedades que têm servido de referência à nossa democracia, centrado na perspectiva do indivíduo – razão última e sujeito de todas as liberdades e direitos.


Trata-se, na verdade, de sugerir questões – ainda que de maneira simplificada e breve – que ajudem a compreender se a minha ou a sua, leitor(a), liberdade de expressão pode ser considerada igual, equivalente ou simétrica à liberdade de imprensa de um grupo de mídia, digamos, o Grupo Abril. A diferença entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa realmente existe?


Printing (impressão) vs. Press (imprensa)


As diferenças começam com o próprio significado da palavra imprensa. Creio que o herdamos da língua inglesa. Nela, porém, existe uma distinção entre speech (palavra), print (imprimir) e press (imprensa) que, na maioria das vezes, não se faz entre nós.


Um exemplo: se formos ao Areopagitica de John Milton (1644), clássico reiteradamente lembrado na defesa da liberdade de imprensa, veremos que ele se refere ao direito natural do indivíduo de expor e imprimir (print) suas idéias (no caso em defesa do divórcio), sem restrições externas (liberdade negativa). O seu argumento, eminentemente religioso, gira em torno da capacidade individual de livre-arbítrio (contra a predestinação) e da consequente necessidade de cada um se expressar e se expor às diferentes versões sobre um assunto para alcançar a verdade. Tudo isso desde que não se ofenda a Deus. Para Milton, reformista Puritano, os católicos estavam excluídos dessa liberdade, porque intolerantes, e na medida em que o ‘papismo pretendia extirpar todas as religiões e supremacias civis’ (p. 177).


A Areopagitica não poderia estar se referindo à imprensa, no seu significado moderno: primeiro porque, no texto, não há referência a press, mas sim a printing; e, segundo, porque na Inglaterra do século XVII, por óbvio, não existiam empresas comerciais que imprimissem ‘jornais’ – não existiam ‘jornais’ – e, muito menos, empresas comerciais de mídia (de meios impressos e/ou eletrônicos), sentido contemporâneo no qual (ainda) é empregada a palavra imprensa.


Note-se, no entanto, que na única edição existente entre nós do Areopagitica (Topbooks, 1999), o seu subtítulo é traduzido como ‘Discurso pela Liberdade de Imprensa ao Parlamento da Inglaterra’, enquanto o texto original, na verdade, se refere à liberdade de imprimir sem licença (for the liberty of unlicensed printing).


Speech (expressão) vs. press (imprensa) e indivíduo/cidadão vs. sociedade/instituição


A diferença também aparece nos documentos (legais ou não), que sempre são evocados na defesa da liberdade de imprensa. Eles se referem distintamente (a) à liberdade de imprensa; (b) à liberdade de expressão (de idéias e/ou de opiniões); ou (c) às liberdades de expressão (de idéias e/ou de opiniões) e de imprensa. Isso significa que, historicamente, essas liberdades são entendidas como sendo distintas ou não haveria razão para diferenciá-las. Ademais, a liberdade de expressão está sempre referida à pessoa (indivíduo). Já a liberdade de imprensa aparece como ‘condição’ para a liberdade individual (Virgínia) ou como uma liberdade da ‘sociedade’ equacionada com a imprensa e/ou os meios de comunicação (Chapultepec). Vejamos:


Na Declaração de Virgínia (1776) o Artigo XII fala especificamente em liberdade de imprensa (freedom of the press).


Já a Primeira Emenda da Constituição dos EUA (1789-1791) assegura a liberdade de expressão (freedom of speech), a liberdade de imprensa (freedom of the press), a liberdade religiosa, a separação entre Igreja e Estado, o direito de reunião e o direito de petição.


A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789) fala do direito à ‘livre comunicação das idéias e das opiniões’ e que ‘todo cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente’ (grifo acrescido).


Por outro lado, tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) e a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão (2000), falam em seus Artigos 19, 13 e no Princípio 1º, respectivamente, do direito da ‘pessoa’ (indivíduo) à liberdade de opinião e expressão, especificando que este direito inclui ‘a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios [media, no original em inglês] e independentemente de fronteiras’.


A Constituição de 1988, por sua vez, refere-se à liberdade individual de manifestação do pensamento (inciso IV do Artigo 5º), mas também à ‘plena liberdade de informação jornalística’ (§ 1º do Artigo 220). Registre-se que a única ocasião em que aparece a expressão ‘liberdade de imprensa’ no texto constitucional não é no Capítulo da Comunicação Social, mas em relação às medidas que podem ser tomadas pelo Presidente da República na vigência do Estado de Sítio (inciso III do Artigo 139).


E, finalmente, a Declaração de Chapultepec (1994), que se refere claramente a duas liberdades, a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa.


Não é raro encontrar-se distorções importantes entre o que de fato está escrito nos principais documentos de referência e sua utilização pelos grupos de mídia na defesa do que chamam de liberdade de imprensa.


Comentando o Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), o renomado professor da University of Tampere, Kaarle Nordenstreng, afirma que ‘o sujeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais não é uma instituição chamada a imprensa ou a mídia, mas um ser humano individual’. E prossegue: ‘A frase `liberdade de imprensa´ é enganosa na medida em que ela inclui uma idéia ilusória de que o privilégio dos direitos humanos é estendido à mídia, seus proprietários e seus gerentes, ao invés de ao povo para expressar sua voz através da mídia’. E mais à frente: ‘Nada no Artigo 19 sugere que a instituição da imprensa tem qualquer direito de propriedade sobre esta liberdade’.


É rotineiro encontrar-se não só a utilização das duas expressões – liberdade de expressão e liberdade de imprensa – como equivalentes, mas também o deslocamento da liberdade de expressão do indivíduo para a ‘sociedade’ e, desta, implicitamente, para os ‘jornais’.


Um exemplo recente dessas distorções pode ser constatado nas poucas linhas de anúncio de meia página que a Associação Nacional de Jornais (ANJ) fez publicar em vários jornais por ocasião de seus 30 anos (agosto de 2009). O sujeito da liberdade de expressão deixa de ser o indivíduo e passa a ser uma difusa ‘sociedade’; os jornais são genericamente identificados com ‘os olhos e os ouvidos de milhões de pessoas’ e a imprensa como formadora desinteressada da opinião, ‘o que mais interessa na democracia’. Por fim, liberdade de imprensa e liberdade de expressão são implicitamente consideradas como equivalentes. Abaixo o texto completo do anúncio:




Título: Sem liberdade de imprensa esta seria a única testemunha. [A imagem é de um rato que assiste a uma suposta cena de corrupção sendo praticada por dois homens iluminados por faróis de automóveis).


Texto: Nos últimos 30 anos, o país passou por mudanças decisivas. E os jornais foram os olhos e os ouvidos de milhões de pessoas durante o processo. Graças ao trabalho da imprensa, o cidadão teve acesso a informações preciosas que se tornaram o que mais interessa numa democracia: opinião.


Assinatura: ANJ. Há 30 anos lutando pelo que a sociedade tem de mais valioso: a liberdade de expressão.


De Gutenberg à imprensa do século XXI


Existe uma preliminar básica que diferencia as liberdades de expressão e de imprensa que, todavia, muitas vezes não é lembrada. Enquanto a primeira nasce com o indivíduo, a segunda, para existir, implica não só a disponibilidade do material impresso – tecnologia/máquina e ‘papel’ – mas, também, na capacidade dos indivíduos de lerem, vale dizer, implica a existência de um público leitor. A formação, o tamanho e a história dos ‘públicos leitores’ nas diferentes sociedades conta boa parte da história da imprensa e, consequentemente, da liberdade de imprensa.


Neste contexto, é necessário que se leve em conta também as enormes transformações porque passaram as formas de imprimir e aquilo que é impresso, desde o século XV, passando pela Revolução Industrial do século XIX, pela Revolução Digital do final do século XX, até os nossos dias. Dos volantes avulsos anônimos sem periodicidade, panfletos e pasquins, passando às gazetas, folhas, periódicos e jornais populares de massa até os jornais e revistas de nossos dias.


Quando e como aparece a expressão ‘liberdade de imprensa’? Quando e como o que era impresso passou a ter alguma similitude com o que chamamos hoje de jornal? Quando os impressos e/ou os jornais passaram a ser chamados de ‘imprensa’?


Em pequeno artigo escrito em 1806, Tom Paine afirma:




‘Antes do que na Inglaterra é chamada A Revolução, que foi em 1688, nenhum texto (work) podia ser publicado naquele país sem obter primeiro a permissão de um oficial designado pelo governo para inspecionar os textos que pretendiam ser publicados. O mesmo acontecia na França, exceto que na França existiam quarenta que eram chamados Censores e na Inglaterra existia apenas um chamado Imprimateur. Na Revolução, o cargo de Imprimateur foi abolido e os textos podiam, então, ser publicados sem primeiro obter permissão do oficial do governo. A impressão era, em conseqüência desta abolição, dita ser livre e foi dessa circunstancia que o termo Liberdade de Imprensa (liberty of the press) surgiu.


Para Paine, a liberdade individual de imprimir – que tem sua origem na Revolução Inglesa do século XVII – e a liberdade de imprensa significam a mesma coisa, até porque no seu pequeno artigo ele está a fazer uma crítica aos impressores (printers), especialmente de jornais (newspapers), que, segundo ele, ‘(fazem) uma permanente cobrança (continual cry) da liberdade de imprensa, como se pelo fato de serem impressores eles devessem ter mais privilégios do que outras pessoas’. Registre-se que somente em 1695 se efetiva a liberdade de imprimir na Inglaterra com a abolição das leis de ‘licenciamento’ prévio.


Nos Estados Unidos, o julgamento, por calúnia, de um imigrante alemão impressor (printer), John Peter Zenger, em 1735, é considerado a referência inicial para o estabelecimento da liberdade de imprensa. Ele foi absolvido por um júri popular de acusações de calúnia feitas pelo governador da então província de New York. Quarenta anos depois, a liberdade de imprensa já aparece na Declaração de Virgínia (1776) como um dos ‘grandes baluartes da liberdade, não podendo ser restringida jamais, a não ser por governos despóticos’.


Na Inglaterra, há de se mencionar também a famosa defesa de Tom Paine, acusado de traição e calúnia pela publicação de seu ‘Direitos do Homem’, feita in absentia por Thomas Erskine, em 1792. Embora derrotado, seu discurso é por muitos considerado, ao lado de clássicos como John Milton e John Stuart Mill, como uma referência para as liberdades de expressão e de imprensa.


A questão que permanece, todavia, é se a liberdade de imprensa a que se referem Paine, o julgamento de Zenger, a Declaração de Virgínia ou a defesa de Erskine guarda alguma semelhança com o que contemporaneamente se entende como imprensa.


Para celebrar criticamente os 40 anos do influente ‘Four Theories of the Press’ e reavaliar as recomendações da Hutchins Commission (Teoria da Responsabilidade Social da Imprensa), nove professores titulares da University of Illinois publicaram um livro coletivo organizado por John Nerone (1995). Referindo-se às justificativas clássicas da liberdade de imprensa como direito natural (John Milton) e direito utilitário (John Stuart Mill), os autores resumem as principais diferenças entre a imprensa dos séculos XVII e XIX e a imprensa do século XXI.


Vale a longa citação:




‘Liberdade de imprensa fazia razoável bom senso como direito natural. Embora o cidadão comum não nasça com uma impressora (ao contrário, por exemplo, da consciência ou da palavra), ainda assim era relativamente fácil justificar liberdade de imprensa como uma extensão destas outras formas de liberdade de expressão. Da mesma forma, num mundo de indivíduos atomizados, liberdade de imprensa fazia tolerável bom senso como um direito utilitário. Deus não criou necessariamente esta situação, mas as pessoas concordavam que indivíduos livres para imprimir suas idéias estariam mais bem preparados para o autogoverno. Em ambas essas versões da filosofia política liberal, liberdade de imprensa é um direito do indivíduo, como liberdade de expressão (speech) ou consciência; `a imprensa´ é nada mais do que a impressora (printing press), o equipamento real da expressão impressa. Isto não é mais o que `a imprensa´ significa.


‘Hoje a imprensa é compreendida como sendo uma instituição – uma coleção de organizações noticiosas (news organizations) que guardam a mesma relação com `o povo´ como, por exemplo, a Bolsa de Valores de New York. Ninguém pode fingir que a Bolsa de Valores de New York é o povo. Nem a imprensa pode ser equiparada com o povo. Por que devemos então falar de liberdade de imprensa? Na política liberal, entidades empresariais (corporate entities) têm liberdade somente como pessoas fictícias (i.e., indivíduos) ou como depositárias de liberdades individuais de pessoas reais. É difícil pensar a imprensa como uma pessoa fictícia. E, se a imprensa é a depositária das liberdades individuais de seus leitores, então ela certamente tem que ter responsabilidades. Ela não está mais livre para trabalhar contra os interesses de seus leitores do que uma empresa publicamente controlada está livre para trabalhar contra os interesses de seus acionistas. Em termos intelectuais, então, a noção liberal clássica de liberdade de imprensa já havia deixado de fazer sentido na década de 50′ (p.5, tradução do autor).


Não parece haver dúvida, portanto, de que a liberdade de imprensa clássica como extensão da liberdade de expressão individual não guarda qualquer relação com o que se pretende por liberdade de imprensa no mundo dos grandes conglomerados globais de comunicação e entretenimento, muitos deles com orçamentos superiores àqueles da maioria dos Estados membros das Nações Unidas. É neste sentido que, há mais de 15 anos, o jurista Fábio Konder Comparato afirmava:




‘A originária liberdade de expressão ou de imprensa acabou esbarrando, na sociedade de massas, num obstáculo técnico insuperável: o acesso aos meios técnicos de difusão das mensagens. A sociedade de antanho era a comunidade do face a face. A sociedade contemporânea é a da comunicação simbológica ou telemática: as relações já não são pessoais, mas globais. A liberdade de expressão hodierna só se concebe para aqueles que têm meios – materiais e pessoais – de montar instituições de teletransmissão das mensagens: os controladores das empresas de imprensa, rádio e televisão.’


Democracia e ‘estrutura policêntrica’


Diante da nova realidade do significado da palavra ‘imprensa’ nas sociedades contemporâneas, ganha ainda maior importância uma condição para que a liberdade de imprensa cumpra o papel a ela atribuído nas democracias liberais. Embora contemplada em alguns documentos de referência, essa condição tem sido relegada a um segundo plano na formulação das políticas públicas do setor de comunicações e sua mera presença nas normas legais tem sido, por vezes, considerada como suficiente em arrazoados que justificam importantes decisões legais. Trata-se, daquilo que o cientista político ítalo-americano Giovanni Sartori tem chamado de ‘estrutura policêntrica dos meios de comunicação’.


O vínculo entre liberdade de expressão, liberdade de imprensa e democracia passa pela crença liberal de que o livre debate feito por indivíduos racionais e bem informados no mercado de idéias conduzirá necessariamente à formação de uma opinião pública independente capaz de tomar as melhores decisões para o conjunto da sociedade e, mais ainda, à prevalência da verdade.


É a conhecida tese do market place of ideas muitas vezes atribuída a John Milton – que nunca falou em mercado de idéias – e/ou a John Stuart Mill – que rejeitou categoricamente o dito (the dictum) – ‘a verdade sempre triunfa sobre a perseguição’ – como uma ‘dessas agradáveis falsidades que os homens repetem uns aos outros até se transformarem em lugares-comuns, ainda que toda a experiência as refute’ (p. 45).


Em seu A Teoria da Democracia Revisitada (1994), Sartori afirma que uma das duas condições que permitem uma opinião pública relativamente autônoma é ‘uma estrutura global de centros de influência e informação plurais e diversos’. E continua:




‘A essência do argumento é que uma opinião pública livre deriva de uma estruturação policêntrica dos meios de comunicação e de sua interação competitiva, e é sustentada por elas. Em síntese, a autonomia da opinião pública pressupõe condições semelhantes às condições de mercado. (…) Os benefícios da descentralização e competição dos meios de comunicação de massa são, nesse argumento, mecânicos em grande parte, e de dois tipos. Primeiro, a multiplicidade dos que querem persuadir reflete-se na pluralidade de públicos; o que produz, por sua vez, uma sociedade pluralista. Segundo, um sistema de informação semelhante ao sistema de mercado é um sistema autocontrolado, um sistema de controle recíproco, pois todo o canal de informação está exposto à vigilância dos outros’ (vol 1, pp. 139-140).


Independente de se acreditar ou não na eficiência de um suposto market place of ideas e nos seus benefícios para a democracia, uma das premissas para a formação de uma opinião pública independente, sem dúvida, é a existência de competição entre os meios de comunicação, ou, na linguagem de Sartori, de uma ‘estrutura policêntrica’. A liberdade de imprensa encontraria sua justificativa, portanto, na medida mesma em que permitisse a circulação da diversidade e da pluralidade de idéias existentes na sociedade – vale dizer, garantisse a universalidade da liberdade de expressão individual.


Parece ser exatamente este o princípio que está contido na disposição da Constituição de 1988 que reza:




Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.


(…)


§ 5º – Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.


Da mesma forma, a Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Imprensa (2000) em seu Artigo 12, afirma:




‘Os monopólios ou oligopólios na propriedade e controle dos meios de comunicação devem estar sujeitos a leis antimonopólio, uma vez que conspiram contra a democracia ao restringirem a pluralidade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito dos cidadãos à informação. Em nenhum caso essas leis devem ser exclusivas para os meios de comunicação. As concessões de rádio e televisão devem considerar critérios democráticos que garantam uma igualdade de oportunidades de acesso a todos os indivíduos.’


Parece claro, portanto, que não se pode atribuir apenas ao Estado, como usualmente ocorre, a ameaça às liberdades de expressão e de imprensa. É claro, em passado ainda recente, atravessamos longos 21 anos de um Estado autoritário que utilizava a censura prévia (não só da imprensa) para atingir seus objetivos. Muitas das cicatrizes desse tempo ainda estão abertas. No entanto, é abismal a distância entre o Absolutismo religioso e laico do século XVII e o Estado Democrático de Direito prevalente em boa parte do mundo no século XXI, inclusive entre nós. Sem a garantia de funcionamento dos meios de comunicação dentro de uma ‘estrutura policêntrica’, não há como falar em liberdade de imprensa garantidora da democracia.


E o Brasil?


É preciso, por fim, que todas as questões brevemente levantadas em relação às diferenças entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa sejam transpostas para o contexto histórico brasileiro. Tanto no que se refere à história das idéias, quanto à história da própria imprensa e à história das normas legais. Essa é uma tarefa que está ainda por ser completada, embora tenha aumentado significativamente o número de estudos de qualidade sobre a temática.


Não há dúvida de que nossa imprensa tardia se desenvolveu nos marcos de um liberalismo antidemocrático (Emília Viotti) que gera um sistema de mídia predominantemente privado, concentrado (nunca tivemos qualquer restrição à propriedade cruzada) e fortemente marcado pela presença de políticos profissionais e representantes de diferentes religiões como concessionários do serviço público de radiodifusão. Ademais, a sociedade brasileira, como já mencionado, enfrenta uma interdição do debate público de questões relativas à democratização da mídia. Essa censura disfarçada é praticada exatamente por parte daqueles atores e interesses que, como no tempo de Thomas Paine, ‘[fazem] uma permanente cobrança (continual cry) da liberdade de imprensa, como se pelo fato de serem impressores eles devessem ter mais privilégios do que outras pessoas’. Mantendo-se hegemônicos eles têm conseguido impedir o debate indispensável ao verdadeiro exercício da liberdade de expressão e ao aprimoramento da democracia.


 

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009; no prelo)